Dez cenas que marcaram o cinema

Dou, aqui e agora, início a uma série em 10 episódios. Participei na Fundação Gulbenkian num animadíssimo evento chamado O Gosto dos Outros. Tocou-me fazer uma escolha impossível: eleger as 10 cenas mais marcantes da História do Cinema. Há mais de mil. A minha escolha é, por isso, criminosa. Ora vejamos.

Bernardo Lisboa
Lado a lado com Inês Lopes Gonçalves, minha paciente moderadora. Foto do meu amigo Bernardo Lisboa.

Agradeço muito o convite que a Fundação Gulbenkian me fez, convite que eu sei ter sido instigado pelo espírito inquieto e subversivo do Nuno Artur Silva.  E palpita-me, que deve ter andado também por aqui o dedo conspirativo do Pedro Norton. Obrigado e os meus respeitos à Gulbenkian e ao Nuno. Ao Norton, não tenho respeito nenhum, que entre nós é só copos e má vida.

Confesso que recebi o convite com surpresa, por não saber que agora a Gulbenkian tinha decidido avançar por territórios que violam o direito internacional e a nossa Constituição. Aquilo para que fui convidado é anti-constitucional. Ninguém consegue fazer a listas das 10 melhores cenas de sempre da História do Cinema, a não ser que esteja disposto a ferir os direitos humanos, fazendo purgas estalinistas e mandando para campos de reeducação milhares de cineastas, argumentistas e actores.

O que vos vou apresentar é, portanto, o meu crime, uma escolha cega, comandada pelas minhas lamentáveis pulsões afectivas, espirituais, porventura sexuais, comandada sobretudo pelo meu lado meloso, mariquinhas e choramingas, que é, aliás, o único lado que eu tenho.

way-down-east

 WAY DOWN EAST  (1920)
a cena das placas de gelo e o salvamento de Lilian Gish

Vamos então ao crime, às dez cenas. A primeira é de 1920, do cinema mudo. Filmou-a D.W. Griffith. O filme chama-se Way Down East (As Duas Tormentas). É um melodrama protagonizado pela fabulosa Lilian Gish.

Ela vem do campo para a cidade e é seduzida e enganada por um escroque. Encontra depois o amor, mas o escroque vem lá do passado e cobre-a de infâmia, lançando a dúvida junto do seu novo apaixonado e da família. Ultrajada e revoltada com a injustiça, Lilian Gish foge de casa e mergulha, frágil e vulnerável, nos terríveis braços de uma noite de breu e tempestade. Eis a cena.

 

Escolhi esta cena porque está aqui, pela primeira vez, de uma forma consolidada, a utilização já madura da montagem paralela de duas acções simultâneas. Está aqui, na sua forma essencial, todo o mecanismo de fuga e perseguição, que fez a glória do cinema. E está esse ingrediente, que nos grandes filmes provoca a dor de barriga do espectador e a explosão do seu coração, a saber, o salvamento no último minuto.

Griffith, o cineasta a quem tudo devemos, segundo Godard, aos elementos estruturais que referi (acções paralelas; fuga e perseguição; salvação no último minuto), junta um elemento visual esplendoroso, a natureza em delírio. A força desta cena vem do espaço imenso, da tempestade homérica, da aterradora visão do gelo a quebrar-se, da revolta intestina do rio.

Griffith, que era um sádico, como todos os grandes realizadores, com uma abençoada maldade masculina, atira para o meio de tudo isso o lírio de campo que é a frágil e comovente Lilian Gish. É impossível não nos identificarmos com essa adorável figura ameaçada por forças gigantescas e maiores do que a vida. Grande vitória do cinema: ensinar-nos a identificação com as sombras e luzes projectadas numa tela, chorar, sofrer e amar com os heróicos fantasmas que vemos no ecrã.

Próximo capítulo: Steamboat Bill Jr., Buster Keaton

6 thoughts on “Dez cenas que marcaram o cinema”

  1. Obrigada:). Vamos aguardar os nove restantes. Este, está – e acredito que também tenha estado – bem defendido. Deixa-nos até a pensar se não será uma das tais dez cenas.

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