Hoje, neste falso Outono de 2018, hoje que Lisboa e Portugal são o acrisolado destino da Europa e do Mundo, eis que a África, a minha ideia de África e as minhas memórias de África vêm e voltam, como uma espécie de náusea feliz e dionisíaca, matizar o apolíneo cortejo de pompa e circunstância com que os “media” nos brindam. A nostalgia, na sua preguiçosa forma tropical, mordeu-me e eu deixei, deixo, deixarei sempre.
Lembro-me de que cheguei a Luanda a 29 de Junho de 1959. Dia de São Pedro. Do belo convés do Vera Cruz, e ainda antes de ver o meu pai, ausente há dois anos, a primeira coisa que me fascinou foram as barrocas vermelhas, erguendo-se contra o mar, desafiando a baía, tão selvagens como Monument Valley, que só muito mais tarde os filmes de John Ford me fariam descobrir. Nunca mais conseguirei ser de uma cidade como fui da cidade de São Paulo da Assumpção de Loanda.
Lembro-me de que a vida era doce e quente, tão genuína como o espectáculo da projecção de filmes no cinema dos padres capuchinhos, em que os espectadores tentavam alterar o curso dos westerns atirando sapatos aos “bandidos” para salvar o “rapaz” ou gritavam e assobiavam em desvairada apoteose sempre que um beijo em grande plano enchia o écran.
Lembro-me que as Bessanganas, as Senhoras do Sambizanga varriam o chão de terra em frente à sua cubata deixando-a irreprensível de limpa, numa higiene natural que só a honesta mão humana oferece. A pobreza, quando usa a vassoura, confere, ó se confere, um brilho ético ao mundo.
Lembro-me da música tão física e lembro-me – eu que construí laboriosamente a lenda de que os N’Gola Ritmos ensaiavam na minha rua, mas eram só os Ngoleiros do Ritmo – de uma noite ter bebido copos até o sol nascer num grupo em que estava o Elias Diá Kimuezo.
E lembro-me, no Liceu Nacional Salvador Correia, de beber livremente Coca-Cola pelas garrafas que depois imortalizariam Andy Warhol e de ter lido dezenas de livros proibidos porque o pai de um dos meus melhores amigos era inspector da Pide e dava a ler ao filho, e ele a mim, os livros que eram proibidos aos outros.
Prezo tanto mais estas memórias quanto elas não têm já qualquer substância. São Paulo da Assumpção de Loanda é hoje outra cidade e aquela África outra África. Como nas ficções labirínticas de Borges, quem sabe se essa África não foi apenas um sonho (pesadelo para outros) e nesse sonho eu fui só coisa sonhada.
Foi sonho vivido e, se pesadelo houve, não foi tão mau assim …
Só restou a memória desse tempo ido, que foi há bocadinho.
Como te vejo
Amanhece menina e serena
Em tons de quase lilás
Em sons de alvorecer
Cantam pássaros
Canta o mar
Canta o povo
Hinos de liberdade e paz
Ao meio-dia é moça feita
Que se enfeita
Com raios de sol ardente
Efusiva e atraente
À tardinha
Aquieta-se
E veste-se de Poente
Anoitece mulher
Nua e de lua
Pura e vadia
Sem preço nem favor
Tem mistério tem magia
Diz quem por ela anda
Amanhece novamente menina
Assim é Luanda
guida burt
14.agosto.2018
:):):)
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Obrigado por essa Luanda vestida de Poente
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