A maçã de Newton, uma lista

van gogh
Estas nunca Newton as viu. São maçãs de Van Gogh

Estava por polir e era mal areado. Estou a falar de mim. Mesmo mim, só mim. Eu. Entendamo-nos, eu não era propriamente burro, que os pobres raramente são burros ou matumbos, como se dizia naquela minha outra terra. Ser-se burro era um luxo a que só se podiam dar as classes altas – e sim, hoje estou nervosamente marxista.

Vinha a sair da ruralidade campesina, a baldear-me para a pequena burguesia, sem ter passado pelo proletariado. Estas coisas dão em geral mau resultado. Há ali um leap of faith que, em muitos casos, faz um tipo bater com os ossos no lumpen. Em alemão, para que se perceba a gravidade da coisa: das Lumpenproletariat. E ninguém, por mais mal polido e pior areado quer ser trapo,  ou coisa desprezível, molusco sem coluna vertebral, que é o que o palavrão alemão quer, no finalzinho das coisas, verdadeiramente dizer.

Não sabia nada, ninguém me tinha dito coisa nenhuma, e as coisas de que vou falar atropelaram-me. Descobri sozinho ou foram coisas que sozinhas vieram ter comigo. Antes de ter 18 anos. Foi entre os 15 e os 18 e gostei. Depois descobri que, para cada uma dessas coisas de que eu, quase intuitivamente começara a gostar, havia turbas de apreciadores e que as autoridades, ou os mestres na especialidade, estimavam, fazendo muitas festinhas a quem gostava.

Ou seja, e deixando-me de folclore, esta é uma lista de coisas de que eu comecei a gostar sem ninguém me ter mandado ou obrigado. Para quem gosta de listas.

Nausea

A Náusea, um romance de Jean-Paul Sartre. Tinha 15 anos e dizia-se que Sartre era um filósofo. Fui ler e era o romance de um tipo que pegava numa pedra e sentia na mão a vida horrivelmente palpável e viscosa da pedra. Fiquei impressionado e com doida vontade de impressionar. Lembro-me que o protagonista ia para a cama com a dona da pensão: “Apertava-me a cabeça contra o seu peito num transporte de paixão: julgava que era assim que devia ser. Eu, por meu lado, dedilhava-lhe o sexo debaixo da roupa; depois o meu braço entorpeceu.” Pensem o que quiserem, as folhas do livro de 301 páginas estão todas a soltar-se.

purple

Deep Purple –  Agora que vou congelando as famosas “memórias afectivas” ponho-me a imaginar que “Child in Time” foi a primeira canção que ouvi deles. Se foi, tinha 17 anos e julgo que a ouvi num programa que o meu velhíssimo amigo António Macedo, ao fim da tarde de cada dia de semana, fazia na Emissora Oficial de Angola, antes de alguém dizer, como na altura se passou a dizer, que os Deep Purple eram muito bons. Eram. Que se lixe, eram mesmo.

rain

Rain People, de Francis Coppola – Vi-o no cinema dos sargentos, perto do colégio dos maristas – também lá vi Buster Keaton e Chaplin, e agora venham dizer-me que a tropa é repressiva! Ninguém sabia, ninguém queria ou esperava saber, quem era o raio do realizador de um filme com uns miseráveis actores desconhecidos. Gostei muito da mulher que saía de casa e abandonava o marido. Achei, na altura, que era mesmo o que me convinha.

paraso

A Leste do Paraíso, de John Steinbeck. Foi só o titulo e por ser um romance, sem saber sequer que também existia um filme. Aprendi o que havia a aprender sobre o livre arbítrio. Timshel era a palavra hebraica. Dizia-a um criado chinês, extraordinária personagem de que o filme de Elia Kazan abdicou. Era, no romance de Steinbeck, um criado chinês que, incapaz de dizer os “r”, como deve fazer todo o chinês que se preze, dizia lindamente timshel. Que era, como se pela boca desse ilustre servo chinês falasse Nosso Senhor, e em vez de dizer timshel dissesse “tu podes, caralho, tu podes, se quiseres, tu podes.”

gótico

Catedrais góticas – Um gosto estranho para quem vivia desde os cinco anos nos trópicos. Sempre achei glorioso (e nervoso) o rendilhado decorativo externo e a luz que os vitrais filtravam para o interior. Ainda hoje tenho vivo preconceito contra quem revire os olhos quando se fala de Idade Média. Gostava tanto que fui a uma semana de conferências (o que eu ouvi dos meus amigos) que o professor Adriano Vasco Rodrigues foi fazer a Luanda comparando e contrastado o românico e o gótico. Projectavam-se uns revolucionários slides e descobri então que era míope. À saída, por volta das 11 da noite, perdia os autocarros por não conseguir ver-lhes os números. E lá ia eu a pé, ogival, em passo de gótico manuelino, Estrada de Catete acima, a chegar ao Bairro Popular, para onde acabara de me mudar, às duas da manhã.

beatles

Sgt.Peppers Lonely Hearts Club Band – Tínhamos outra vez 15 anos (tínhamos sempre 15 anos naquela altura) e o LP era diferente de tudo o que os rapazes de Liverpool tinham feito. Gostei logo e fiquei de cabeça perdida com a Lucy, à espera de que ela virasse para mim os olhos caleidoscópicos.

cage

John Cage – Calhou ouvir. Sabe Deus como, porquê e quando. A ousadia da coisa, a aceitação do ruído, das vozes que falam conversas de cada dia, a mistura fraternal disso tudo com os silêncios, desassossegaram-me e sossegaram-me. Calhou também ler Allan Watts a seguir. Mais Zen não podia haver. Não descansei enquanto não tive dele o meu primeiro LP. Consegui: o Variations IV que está ali em cima.

navalha

O Fio da Navalha, de Somerset Maugham. A minha lição de boas maneiras. Escrita sem mariquices, se assim se pode dizer, sabendo-se a pronunciada inclinação de quem o escreveu. Prosa límpida e ágil, penetrante e viva nas descrições, de uma sincera humanidade na exposição de cada personagem e meio social. Foi a minha passadeira vermelha para um plácido lago agnóstico. E aprendi que um verso de Ronsard – mignonne allons voire si la rose – fica bem em qualquer dedicatória.

klein

Eine Kleine Nachtmusik – Restos de uma mala abandonada no Porto de Luanda. O meu pai trouxe-me meia-dúzia de 45 rotações “estrangeiros”. Um era de Jean Ferrat, outro era essa Kleine Nachtmusik que ouvi aos 12 anos até à exaustão. Já me tinham mais ou menos ameaçado que era preciso gostar-se daquilo, não sabia que se podia gostar tanto e de olhos tão fechados.

Os sinais de fumo da realidade

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Eis o que faz do cinema uma arte, o involuntário humor da realidade. Cinco histórias.

A vingança dos índios. O produtor do western “Fabulous Texan”, esganado de autenticidade, contratou índios autênticos para criarem os sinais de fumo com mensagens correctas. Os índios foram impecáveis e o produtor desfez-se em agradecimentos. Diz-lhe um: “Oh, foi fácil, aprendemos a fazer os sinais com os vossos westerns.”

Casamento proibido. O produtor de “That Hagen Girl” fez um teste com público antes da estreia. Numa cena, Ronald Reagan dizia, com voz de manteiga, à namoradinha da América, Shirley Temple: “Casas comigo?” A sala veio abaixo com um raivoso coro de “Oh, não, não, não.” A cena foi cortada do filme.

Os donos de Casablanca. Os manos Marx pensaram numa sátira ao glorioso “Casablanca”, de Bogart e Ingrid Bergman. Os manos Warner, produtores do original, inquietaram-se, ameaçando com um processo. O intelectualíssimo Groucho Marx respondeu-lhes: “Não sabia que os irmãos Warner eram os proprietários de Casablanca. Mas mesmo que decidam reexibir agora vosso filme, julgo que o espectador médio vai conseguir, com o tempo, distinguir Ingrid Bergman de Harpo Marx.”

À bomba ou a tiro? Os americanos não papam a realidade nua a que os europeus se obrigam. Vejamos. Em 1946, no atol de Bikini, fizeram o ensaio atómico que mitificou o local. Roubando o nome à personagem a que Rita Hayworth deu o corpo que a divina genética lhe desenhou, chamaram Gilda à bomba atómica. Fantasia nuclear.

Agora, o cru realismo europeu. O filme “La Bataille du Rail” homenageava a resistência francesa. Os meios eram precários, não havia acessórios, nadinha, nem balas simuladas. Os figurantes eram mesmo resistentes e, numa cena de ataque a um comboio, disparavam sobre uma carruagem com balas reais, supondo-a vazia. Lá dentro, o técnico de som, Constantin Evangelou, escapou por um triz com vida.

De onde vem a música? Hitchcock não queria música no seu “Lifeboat”. Era o filme de um minúsculo salva-vidas na vasta solidão do oceano. O espectador, irritou-se Hitchcock, vai perguntar, defraudado, de onde raio é que vem a música. David Raksin, compositor lendário de Hollywood, ripostou com lógica: “Que me diga onde raio é que, no meio do oceano, pode estar a câmara, e logo lhe direi de onde vem a música.”

bataille du rail

publicado no Expresso