Molhada era uma star

São histórias ou quase. Episódios que me trazem lembranças, talvez.

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Chaplin
Há o grito de alma. Charlie Chaplin, perdoemos-lhe o populismo, gritou assim, da sua milionária torre de marfim: “Se há uma coisa que sou e só uma coisa, é um palhaço. O que me põe num plano bem mais elevado do que qualquer político.” Ora, proclamações destas acabam em caldos requentados e sujos e se havia uma coisa de que Chaplin gostava era de bouillabaisse rica, com lagosta. Sei do que falo: provei-a no Tetou, em cima da baía de Golfe-Juan, onde ele já a comera regalado, gosto que deixou lavrado no livro de honra do restaurante. Não há melhor no mundo.

Casablanca
Precisamos de palhaços e de políticos, de preferência separados. Mas precisamos também de má-língua. A má-língua que nos alivie de ressentimentos e do cesto de desaforo que às vezes levamos para casa. A mim, por exemplo, sempre me enervou Paul Henreid, o resistente careta de “Casablanca”. No fim do filme, rouba Ingrid Bergman a esse Bogart que somos todos nós e eu também. Consola-me que dele se dissesse em Hollywood: “Paul parece um tipo cuja ideia de um divertimento louco fosse sentar-se em cima de uma campa húmida e fria um dia inteiro.”

Sinatra
Se bem que eu goste de Frank Sinatra, sempre o achei muito queixinhas. Um actor delicioso em “Anchors Aweigh” e “On the Town”, soberbo em “Some Came Running”. Mas queixinhas – deve ter sido a chorar-se que acabou na cama de Ava Gardner. Marlon Brando, que o aturou em “Guys and Dolls”, dá-me razão: “Quando morrer e chegar ao céu, é tipo para dar uma seca maluca a Deus por tê-lo feito careca.”

Esther
Como sei que, no céu, o João Bénard já não vai ler esta crónica, suplício a que só se submete quem pernoite no purgatório, posso discordar amenamente do deliciado apreço que ele tinha por Esther Williams, hidrográfica bailarina de mil piscinas. Joe Pasternak, produtor dela, de Gene Kelly e de Marlene Dietrich, resumiu-lhe a carreira: “Molhada, Esther era uma star.” E, Deus Nosso Senhor, Tu que sabes tudo, não precisas de me vir a correr dizer que o João até está de acordo. Bem sei que sim.

Mature
“Nunca tinha visto um filme em que o peito do herói fosse maior do que o da heroína”, disse Groucho Marx à saída de um épico bíblico de Victor Mature. Leve veneno marxista, que não se compara com o corte a bisturi desta boca do escritor Somerset Maugham, a ver Spencer Tracy representar em “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”: “Qual é que ele está a fazer agora?”

O pai de John Kennedy

Gloria & Kennedy
Gloria Swanson & Joseph Kennedy

As mãos de um católico

Sei lá se Joseph P. Kennedy gostava de cinema. Sei que nos filmes em que nós vemos sonho, ele viu ouro. Estou a falar do Kennedy pai dos Kennedys e o cinema, 1927, é o mudo dos estúdios de Hollywood dirigidos por judeus, que vendiam roupa em feiras do Relógio, da Rússia à Hungria, antes de desembarcarem na abençoada América.

A Kennedy, católico, já com sete pequeninos Kennedys, entrou-lhe no olho direito o reflexo dourado de Hollywood. Viu salas arrebatadas por drama e aventura, salas de joelhos no chão a venerar a luz e sombra de heróis e divas espelhados numa tela e percebeu: é o negócio do século! Não podia era ser percebido por tipos cuja experiência de gestão fora a de passar a ferro cem pares de calças num dia.

Kennedy vinha da Wall Street e fez entrada de leão. Convidou os dez maiores passadores de calças de Hollywood a virem falar a Harvard e fez, com os dez discursos, um livro com capa de ouro, que lhes ofereceu a seguir. Tinha-os na mão. Em quatro anos, Kennedy, o papá, inventou a verticalização dos estúdios, inundando-os de capital e assegurando o controlo da produção, distribuição e exibição.

Agora vejamos, aquele era o tempo de Gloria Swanson. Valia mais do que uma off-shore. Oito batedores de moto precediam o esplêndido carro que a levava, crianças nos passeios acenavam-lhe com bandeirinhas e flores, na sua mansão as casas de banho eram de mármore negro, as banheiras de ouro. Casara, em Paris, com o Marquis de la Falaise de la Coudraye.

“Não!”, foi o que ela disse ao contrato de um milhão de dólares com a Paramount. E metera-se a produtora dos seus filmes. Andava, agora, aos papéis. Foi ter com Kennedy, claro. Viram-se. Ele viu a mulher pequenina, um metro e cinquenta de estrelato, um anélito afrodisíaco de estremecer. Ela viu as belíssimas mãos louras dele, gestos a desenhar arabescos e dedos abertos a sublinharem um riso franco. Dali a nada, o tempo de meter o marquês francês num iate para um inteiro dia de pesca (e é, por isso, que as relações da França com a América são o que são), e as mãos dele já se escondiam nela, a boca na boca dela. Nas memórias, Swanson escreveu: “Era um cavalo selvagem a querer livrar-se das cordas, enérgico, a correr louco para ser livre.” E lembra-se do impetuoso clímax.

As contas? Vamos pedir a Joseph P. Kennedy para ver a contabilidade e passemos ao próximo episódio.

Roçar-se pelo delírio

Aí estão eles, embrulhados na mesma cama: Kennedy, o pai de todos os Kennedys, e Gloria Swanson, a maior diva dos anos 20. Kennedy despachou o marido da Swanson para um dia de pesca no alto mar e mandou Rosa, sua mulher, ter o oitavo filho em Boston, longe de Hollywood. Livres, foi uma cama diária de três anos e não lhes chegava: levaram os lençóis para o cinema.

Kennedy era já o estratega financeiro de três grandes estúdios. Ficou também à frente da produtora de Gloria. Subiu-lhe, do baixo-ventre à cabeça, a vocação de produtor. Chamou o mais heterodoxo génio de Hollywood, Eric von Stroheim, e pediu-lhe uma obra-prima para o metro e cinquenta de mulher que o fazia roçar-se pelo delírio. O que Stroheim lhes contou aterraria o mais pintado.

Vejamos, Gloria Swanson seria, no filme, uma lindíssima noviça. Mas o noivo de uma rainha iníqua e louca poria nela a cobiça dos seus olhos lúbricos. Apontar-lhe-ia para os tornozelos a dizer que lhe caíra aos pés a mais íntima peça de lingerie. Ela, humilhada e em fúria, tiraria a cobiçada peça e, escandalizando as freiras, atirava-lha à cara. O príncipe cheiraria com vagar os folhos do troféu e raptaria a dona, imiscuindo-se-lhe na desprotegida inocência. Não quereria já casar com a rainha. A funestíssima soberana descobriria, chicoteando a já pouco noviça e expulsando-a do reino. A fugitiva de Cristo desaguaria em África, a dirigir com tal estúrdia um bordel, que lhe chamariam Queen Kelly.

A esta edificante história do próprio Stroheim, chamou ele “The Swamp”, pântano, se for mal traduzido, ou lamaçal, se quisermos ser autênticos. Kennedy e Swanson chamaram-lhe pêra doce. E meteram-lhe, primeiro um, depois todos os dentes. Foi a mais mítica de todas as catástrofes da história do cinema. Um vingativo acto de Deus.

Nas filmagens, Kennedy submergiu Swanson em generosidade e galantaria. Construiu-lhe um chalé, deu-lhe casacos de arminho. O mundo deles tinha a leveza de umas farófias do meu querido e falecido senhor Armindo. Mas o filme, “Queen Kelly”, foi um desastre sublime. E Kennedy voltou a financeiro, pondo-se ao fresco da pele de produtor. Swanson, sozinha, foi ver as contas. Devia um milhão de dólares, num rol que incluía o generoso chalé e os galantes casacos de arminho.

Será extrapolar muito dizer que começou aqui um certo penchant catastrófico da família Kennedy por Hollywood?

É verdade que és virgem?

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Por estranho que pareça, ser alemão não o impedia de ter um sofisticadíssimo sentido de humor. Chamava-se Ernesto. Lubitsch, se quisermos falar a sério. Foi um dos realizadores que agarrou no cinema ao colo levando-o do planalto do mudo para os desfiladeiros do sonoro.

Aconteceu tudo na primeira esquina dos anos 30, já quase lá vão cem anos. Foi nessa altura que se pediu aos actores que, como os antiquíssimos animais, começassem a falar. Hollywood exigia-lhes até que cantassem. Foi assim que Lubitsch catrapiscou uma encaracoladíssima loura, altas maçãs do rosto, olhos rasgados, cara de saúde, boca boa, uma alegria juvenil, transparente. Soprano, cantava na Broadway. Jeannette MacDonald era a americana da porta ao lado, genuína, vital, virgem. Dos três qualificativos só este último está sujeito a especulação ou, como se dizia em Luanda, a mujimbos.

Entrem comigo no plateau de Love Parade, o primeiro filme que os juntou. O alemão Lubitsch era um perfeccionista e um tirano. Os actores faziam o pino se ele mandasse, até Maurice Chevalier, a outra estrela da companhia. Menos essa Jeannette, americana, saudável e impertinente. Despeitado, Lubitsch pregou-lhe uma partida. Ela abominava que a chamassem pelo diminutivo Mac. Uma noite, Lubitsch mandou que apagassem o nome dela da sua cadeira de actriz, deixando apenas esse execrável diminutivo. Às nove da manhã, Jeannette entrou no estúdio. Lubitsch olhava-a à distância, à espera da explosão de fúria. Ela percebeu tudo e fez vista grossa. Ele foi-se aproximando, «Olá Jeannette, temos de esperar, não te queres sentar?» Ela disse que sim e sentou-se sem olhar para o raio da cadeira, para funda decepção do antepassado de Angela Merkel.

No dia seguinte, Miss MacDonald serviu a vingança quente. Quando Lubitsch chegou à sua cadeira, o nome, Mr. Lubitsch, estava ligeiramente alterado. Em letras mínimas, lia-se Mr. Lu e depois, separada, em maiúsculas, a palavra BITSCH.

Lu foi como ela o passou a chamar. Mesmo no dia em que no camarim ele a provocou: «É verdade que és virgem?» «Quem quer provar o contrário?» desafiou-o ela. Ele encolheu-se e ela: «E a tua mulher, era virgem quando casaste com ela?»

Ficaram unha com carne e faziam vítimas. Um dia, num jantar em casa de Lubitsch, veio Greta Garbo. O realizador apresentou-a. «Como é o nome?» gritou Jeannette, do outro lado da mesa, fingindo-se surda. «Garbo», berrou Lubitsch. «Oh, Garvin», disse ela, deixando a diva sueca de boca aberta. Mesmo assim, Garbo foi educada: «Prazer em conhecê-la, como tem passado?» «Oh, adoro ir ao mercado», respondeu Jeannette. «Eu disse passado», corrigiu-a a Garbo. Já Jeannete olhava espantada para o prato: «Assado? Pensava que era grelhado». Lubitsch apontou discretamente para a orelha e Garbo disse-lhe em surdina: «Pobre mulher, como é que ela consegue cantar, se não ouve.» Para germânico delírio de Lubitsch, do lado de lá da mesa, Jeannette, com rasgado sorriso, murmurou também: «Bom é assim, vou abrindo a boca…» Greta Garbo nunca lhe perdoou.

Ava Gardner

Para o ano que vem, a 25 de Janeiro, diremos que passam 30 anos da morte de Ava Gardner. Actriz. Talvez deusa.

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Quando Ava Gard­ner che­gou a Hollywood, em 1940, Louis B. Mayer podia mais na MGM do que Deus-todo-poderoso no reino dos céus. Aliás, a Cri­a­ção, a Natu­reza, era imper­feita e a MGM não ti­nha outro remé­dio senão corrigir-lhe em estú­dio os defei­tos. Ava Gar­dner foi um des­ses defei­tos.

Agar­ra­ram nela, levaram-na para o Stage 15, o maior set do mundo, e fizeram-lhe o pri­meiro teste. Lee Gar­mes, um dos mai­o­res direc­to­res de foto­gra­fia de Hollywood — que o digam Stern­berg, Hawks, Mamou­lian, King Vidor ou Nick Ray —, fotogra­fou-a e, como Mayer não tinha tempo a per­der, sintetizou-lhe assim os resul­ta­dos: “Não sabe repre­sen­tar, não sabe falar. Mas é espan­tosa.”

Gar­mes era bruxo. Durante dez anos, até à “Pan­dora” de Albert Lewin, cada filme dela era rece­bido com reti­cên­cias, mui­tas reti­cên­cias e, a seguir como remate, a cons­ta­ta­ção de Gar­mes “… but she’s ter­ri­fic”.

No meio desse teste Ava dizia o nome: “Ahvuh Gahd­nah”. Nin­guém per­ce­beu. “Depois muda-se”, decla­rou Louis B. Mayer. Depois muda-se, era para todos os efei­tos o lema de qual­quer estú­dio. Mudava-se tudo. Cha­ma­vam o guarda-roupa, a carac­te­ri­za­ção e entregava-se-lhes a can­di­data. Ava Gard­ner não foi excep­ção. Fizeram-lhe tudo isso, mais uma ida ao den­tista, abriram-lhe conta, desenharam-lhe um currí­culo, deram-lhe aulas de dic­ção e de represen­tação. E Mayer preparava-se para lhe mudar o nome quando repa­rou que Ava Gard­ner era bom, per­feito até. Só que o estú­dio não podia cor­rer o risco de dar o braço a tor­cer — uma vez que fosse — no seu con­fronto com a «nature­za». E se Ava con­ser­vou a sua graça foi por­que Mayer criou a fic­ção de que o nome de bap­tismo da rapa­riga era Lucy Ann John­son, nome impos­sí­vel que o estú­dio cor­ri­gira para a sono­ri­dade har­mó­nica de Ava Gardner.

Femme fatale
Depois de tudo cor­ri­gido, den­ti­ção, cabe­los, pro­nún­cia, o estú­dio deu-lhe uma car­reira. Ou roubou-lha. Fê-la fra­cas­sar de filme em fil­me, mantendo-a em banho-maria durante dez anos. Foi pre­me­di­tado? Ou foi a prova clamo­rosa dos vícios do sis­tema?

Godard, no seu estilo afo­rís­tico, disse um dia: “O cinema não se inter­roga sobre a beleza de uma mulher; o que faz é pôr em dúvida o seu cora­ção, regis­tar a sua per­fí­dia.” A MGM e Louis B. Mayer, ofusca­dos pelo mag­ne­tismo de Ava, pro­ce­de­ram in­versamente. Fize­ram fil­mes para a ima­gem dela, que­rendo que ela fosse refém de uma única ima­gem: sex god­dess, como é óbvio. A pouco e pouco foi-se con­sa­grando o mito frí­volo de femme fatale, con­subs­tan­ci­ado em casamen­tos e aven­tu­ras que envol­ve­ram Mic­key Roo­ney, o músico Artie Shaw, Frank Sina­tra e, quando Ava se pôs a incar­nar a mulher segundo Hemingway, alguns «mata­do­res» es­panhóis.

O pre­con­ceito pre­va­le­ceu refor­çado por fil­mes medío­cres. Firmou-se a ideia, ali­men­tada com insis­tên­cia pela pró­pria, de que não sabia repre­sen­tar. Assegurava-se, por isso, que os fil­mes não per­tur­bas­sem as caracte­rísticas do pro­duto já iden­ti­fi­cado: uma be­leza felina, uma mulher ina­ces­sí­vel, um «mito que se recusa aos homens». Era para a ver assim que o público pagava, foi assim que a MGM a con­ser­vou.

Ava sobre­vi­veu, mas esteve longe de sair incó­lume. Bebia tudo o que lhe apa­re­cia pela frente, gin, vodka, tequila, rum, scotch, bour­bon, cer­veja e cham­pagne. Para não ferir sus­cep­ti­bi­li­da­des, a tudo o que enchia um copo pôs o nome macio de sham­poo. Robert Mitchum, quando con­tra­ce­na­vam em “My For­bid­den Past,” compadeceu-se e pro­cu­rou lavá-la do vício. Mas Ava nunca se con­se­guiu habi­tuar à mari­ju­ana e Mit­chum não teve outro remé­dio senão con­ti­nuar a fumar sozinho.

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Figura de reden­ção
“Se eu sou­besse repre­sen­tar tudo teria sido dife­rente… Mas tive o azar de ter esta cara foto­gé­nica.” Foi o que Ava disse a Henry King durante as fil­ma­gens de “Snows of Kili­man­jaro”.

Dei­xara já de ter razão. Em 1950, Albert Lewin filmara-a pela pri­meira vez a cores, em “Pan­dora and the Flying Dut­ch­man”. À imagem do estú­dio, arma­di­lhada por Mayer, Lewin, que tinha fama de esteta e modos de «grande senhor», opôs pela pri­meira vez a contra-imagem, fazendo-a sur­gir como uma figura de reden­ção. E, em 1953, com “Mogambo” de John Ford, ao lado de Clark Gable, Ava Gard­ner pro­vou, mais do que em qual­quer outro filme, que pode­ria ter sido tanto mais actriz quanto tivesse sido muito menos star. “Ford foi mara­vi­lhoso a diri­gir-me, a falar comigo, a fa­zer-me com­pre­en­der. Acho que é assim que ele traba­lha”, admirava-se, anos depois, Ava. E quem tenha visto “Mogambo” (e quem não viu pouco viu) re­corda-se da ines­pe­rada «pre­sença mas­cu­lina» de Ava, con­tra­ri­ando a ima­gem do «eterno femi­nino» de quase todos os fil­mes ante­ri­o­res. Richard Lippe, um crítico ame­ri­cano, notou e bem que “Mogambo” parece um filme de Howard Hawks e Ava Gard­ner uma heroína hawk­si­ana. Uma rapa­riga viril, des­pa­cha­dís­sima nos diá­lo­gos, com o estofo de quem viveu muito e guarda do pas­sado algu­mas cica­tri­zes. Quando o filme foi exi­bido, houve quem a achasse tão dotada para a comé­dia como Carole Lom­bard e Hollywood nomeou-a para o Oscar de melhor actriz, que per­de­ria para a Audrey Hep­burn de “Roman Holi­day”.

A Car­reira Numa Réplica
Esta­be­le­cida a contra-imagem e auto-exilada em Espa­nha para fugir aos padrões que Hollywood lhe impu­sera (ou que ela mesma em Hollywood se impu­sera), Ava podia agora fazer o seu pró­prio papel e dei­xar de represen­tar o papel que o estú­dio, a «sua» MGM, lhe atri­buíra. Man­ki­ewi­ecz foi buscá-la para ser a “Con­dessa Des­calça”. Tam­bém não tinha muito por onde esco­lher. Ou ela ou Rita Hayworth. Mais nin­guém, senão uma des­tas duas actri­zes, pode­ria fun­dir-se na per­so­na­gem de Man­ki­ewicz (o cine­asta favo­rito dos snobs, como lhe cha­mou gen­til­mente Truf­faut). Quando, no filme, Ava olhava para Humph­rey Bogart, que tinha o papel de rea­li­za­dor, e lhe dizia: “Acho que sou bonita, mas não quero ser esse género de star. Se eu fosse capaz de repre­sen­tar só um boca­di­nho, você ajudar-me-ia a ser uma boa actriz a sério?” ela estava só a con­ver­ter toda a sua car­reira a uma réplica.

Desse drama deu conta Cukor, depois de a diri­gir em “Bhowani Junc­tion”: “Era extre­mamente inte­li­gente. Exerce uma grande fas­cí­nio, mas está assom­brada pelo deses­pero. É uma mulher domi­nada pela fatalida­de. Não está de boas rela­ções con­sigo mesma e, entre outras coi­sas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algu­mas ma­ravilhosas cenas eró­ti­cas… Lavava os den­tes com whisky, de uma maneira muito ordiná­ria e muito exci­tante. Mas foi tudo cor­tado pelos cen­so­res.”

Por causa de Ava Gard­ner a crí­tica fran­cesa pro­du­ziu tone­la­das de prosa maiús­cula e meta­fí­sica. Desde o Mito, ao Eterno Femi­nino, pas­sando pelo Mis­té­rio, Enigma e Esfinge, sem esque­cer o Fan­to­má­tico e o Fugi­dio. Edgar Morin, Ber­trand Taver­nier, Jac­ques Siclier e Ado Kyrou, entre outros, dis­se­ram da sua assom­bra­ção. Por mim, pre­firo a desas­som­brada decla­ra­ção de Cukor. Nela se per­cebe melhor como é que Hollywood tan­tas vezes se auto­blo­queou, por infle­xi­bi­li­dade de estra­té­gia, e como é que, por detrás de cada ima­gem de gla­mour pode haver a contra-imagem rebelde que, com a cum­pli­ci­dade de Cukor, Ford e Man­ki­ewicz, Ava Gard­ner fez, afi­nal, pre­va­le­cer como sua der­ra­deira imagem.

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Busby Berkeley: o erotismo em delírio

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Caramba, vamos lá começar bem o dia. Sentem à mesa do pequeno-almoço um tipo cheio de fantasia, irreprimível na ousadia, adepto da multiplicação.

Há três razões para gostarmos dele:

inventou a dança nos filmes;
inundou o ecrã com delirantes visões eróticas;
celebrou no cinema o milagre da multiplicação das pernas femininas.

Estou a a falar de Busby Berkeley. Ou seja, ninguém! Pelo menos para qualquer pessoa que não tenha passado os cinco últimos anos fechado num arquivo de cinemateca. Ou então, alguém! O maior artista americano do século XX  para Andy Warhol.

Era dance director, fosse lá o que isso fosse (mas era alguma coisa), quando chegou a Hollywood. E, vindo da Broadway, chegou desconfiado. Não é fácil de explicar, mas os filmes dos outros que ele fez, passaram a ser dele. Trabalhou, nos anos 30, com a explosão do sonoro, para a Warner Bros e para o produtor Daryl F. Zanuck. Cabia-lhe imaginar e executar as coreografias dos números musicais de filmes com histórias convencionalíssimas. Só queria, como disse, fazer as pessoas felizes nem que fosse por uma hora. Sem essas coreografias os pobres desses filmes estariam a arder em lume brando num purgatório perto de si.

O que é que Berkeley fez, então? Juntou água, mulheres, bandeiras, soldados, mulheres, noites, camas, pianos, mulheres e transfigurou tudo com uma poética a que podemos aplicar os qualificativos que quisermos – surreal, vanguardista, místico-freudiana – mas que só é explicável se usarmos o termo certo: hollywoodiana.

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Poética hollywwodiana. De brancos imaculados, escuríssimos negros, combinatórias prováveis, mas tão deslumbrantes, de repuxos e nudez, da câmara colocada no ponto de vista de Deus com trompe l’oeil magníficos, imensas paradas de pijamas e ceroulas, centenas de pares sentados em cadeiras de balouço. Acreditem, essa multiplicação, feita com precisão geométrica, pode ser – era e é – a mais erótica, a mais carnal, das visões. Nas palavras directas e talvez tocadas por um módico de ciúme, doutro coreógrafo mais tardio, Berkeley “arranjava montes de louras e filmava-as de todas as maneiras aceitáveis para a classe média. Não as podia despir completamente, mas punha-as de pernas abertas e com os seios pendentes. Tudo aquilo era a sua maneira de olhar eroticamente para mulheres esplêndidas, servindo a câmara de substituto do pénis.

Não será um artista como de Man Ray ou de Matisse se diz que são artistas. É talvez um sargento, ou um jovem tenente (o que bate certo com a sua formação na Academia Militar), com a obsessão das formaturas, mas nos jardins suspensos de Busby Berkeley, no começo dos anos 30, no glorioso preto e branco da Warner Bros, surgiu uma arte pop avant la lettre: a águia americana e as stars and stripes de Jasper Johns, os tintados retratos de celebridades de Warhol, já tinham sido imaginados e delirantemente sonhados em Footlight Parade, Dames, 42nd Street e nas Gold Diggers de Busby Berkeley, nascido em 1895 e chegado ao paraíso a 15 de Março de 1976.  Presumo que o velho e perverso Jeová lhe tenha entregue as coreografias celestes: julgo tê-los visto, aos dois, a deslizar pelos túneis que Berkeley montou com milhares de angélicas pernas abertas.