Para o ano que vem, a 25 de Janeiro, diremos que passam 30 anos da morte de Ava Gardner. Actriz. Talvez deusa.

Quando Ava Gardner chegou a Hollywood, em 1940, Louis B. Mayer podia mais na MGM do que Deus-todo-poderoso no reino dos céus. Aliás, a Criação, a Natureza, era imperfeita e a MGM não tinha outro remédio senão corrigir-lhe em estúdio os defeitos. Ava Gardner foi um desses defeitos.
Agarraram nela, levaram-na para o Stage 15, o maior set do mundo, e fizeram-lhe o primeiro teste. Lee Garmes, um dos maiores directores de fotografia de Hollywood — que o digam Sternberg, Hawks, Mamoulian, King Vidor ou Nick Ray —, fotografou-a e, como Mayer não tinha tempo a perder, sintetizou-lhe assim os resultados: “Não sabe representar, não sabe falar. Mas é espantosa.”
Garmes era bruxo. Durante dez anos, até à “Pandora” de Albert Lewin, cada filme dela era recebido com reticências, muitas reticências e, a seguir como remate, a constatação de Garmes “… but she’s terrific”.
No meio desse teste Ava dizia o nome: “Ahvuh Gahdnah”. Ninguém percebeu. “Depois muda-se”, declarou Louis B. Mayer. Depois muda-se, era para todos os efeitos o lema de qualquer estúdio. Mudava-se tudo. Chamavam o guarda-roupa, a caracterização e entregava-se-lhes a candidata. Ava Gardner não foi excepção. Fizeram-lhe tudo isso, mais uma ida ao dentista, abriram-lhe conta, desenharam-lhe um currículo, deram-lhe aulas de dicção e de representação. E Mayer preparava-se para lhe mudar o nome quando reparou que Ava Gardner era bom, perfeito até. Só que o estúdio não podia correr o risco de dar o braço a torcer — uma vez que fosse — no seu confronto com a «natureza». E se Ava conservou a sua graça foi porque Mayer criou a ficção de que o nome de baptismo da rapariga era Lucy Ann Johnson, nome impossível que o estúdio corrigira para a sonoridade harmónica de Ava Gardner.
Femme fatale
Depois de tudo corrigido, dentição, cabelos, pronúncia, o estúdio deu-lhe uma carreira. Ou roubou-lha. Fê-la fracassar de filme em filme, mantendo-a em banho-maria durante dez anos. Foi premeditado? Ou foi a prova clamorosa dos vícios do sistema?
Godard, no seu estilo aforístico, disse um dia: “O cinema não se interroga sobre a beleza de uma mulher; o que faz é pôr em dúvida o seu coração, registar a sua perfídia.” A MGM e Louis B. Mayer, ofuscados pelo magnetismo de Ava, procederam inversamente. Fizeram filmes para a imagem dela, querendo que ela fosse refém de uma única imagem: sex goddess, como é óbvio. A pouco e pouco foi-se consagrando o mito frívolo de femme fatale, consubstanciado em casamentos e aventuras que envolveram Mickey Rooney, o músico Artie Shaw, Frank Sinatra e, quando Ava se pôs a incarnar a mulher segundo Hemingway, alguns «matadores» espanhóis.
O preconceito prevaleceu reforçado por filmes medíocres. Firmou-se a ideia, alimentada com insistência pela própria, de que não sabia representar. Assegurava-se, por isso, que os filmes não perturbassem as características do produto já identificado: uma beleza felina, uma mulher inacessível, um «mito que se recusa aos homens». Era para a ver assim que o público pagava, foi assim que a MGM a conservou.
Ava sobreviveu, mas esteve longe de sair incólume. Bebia tudo o que lhe aparecia pela frente, gin, vodka, tequila, rum, scotch, bourbon, cerveja e champagne. Para não ferir susceptibilidades, a tudo o que enchia um copo pôs o nome macio de shampoo. Robert Mitchum, quando contracenavam em “My Forbidden Past,” compadeceu-se e procurou lavá-la do vício. Mas Ava nunca se conseguiu habituar à marijuana e Mitchum não teve outro remédio senão continuar a fumar sozinho.

Figura de redenção
“Se eu soubesse representar tudo teria sido diferente… Mas tive o azar de ter esta cara fotogénica.” Foi o que Ava disse a Henry King durante as filmagens de “Snows of Kilimanjaro”.
Deixara já de ter razão. Em 1950, Albert Lewin filmara-a pela primeira vez a cores, em “Pandora and the Flying Dutchman”. À imagem do estúdio, armadilhada por Mayer, Lewin, que tinha fama de esteta e modos de «grande senhor», opôs pela primeira vez a contra-imagem, fazendo-a surgir como uma figura de redenção. E, em 1953, com “Mogambo” de John Ford, ao lado de Clark Gable, Ava Gardner provou, mais do que em qualquer outro filme, que poderia ter sido tanto mais actriz quanto tivesse sido muito menos star. “Ford foi maravilhoso a dirigir-me, a falar comigo, a fazer-me compreender. Acho que é assim que ele trabalha”, admirava-se, anos depois, Ava. E quem tenha visto “Mogambo” (e quem não viu pouco viu) recorda-se da inesperada «presença masculina» de Ava, contrariando a imagem do «eterno feminino» de quase todos os filmes anteriores. Richard Lippe, um crítico americano, notou e bem que “Mogambo” parece um filme de Howard Hawks e Ava Gardner uma heroína hawksiana. Uma rapariga viril, despachadíssima nos diálogos, com o estofo de quem viveu muito e guarda do passado algumas cicatrizes. Quando o filme foi exibido, houve quem a achasse tão dotada para a comédia como Carole Lombard e Hollywood nomeou-a para o Oscar de melhor actriz, que perderia para a Audrey Hepburn de “Roman Holiday”.
A Carreira Numa Réplica
Estabelecida a contra-imagem e auto-exilada em Espanha para fugir aos padrões que Hollywood lhe impusera (ou que ela mesma em Hollywood se impusera), Ava podia agora fazer o seu próprio papel e deixar de representar o papel que o estúdio, a «sua» MGM, lhe atribuíra. Mankiewiecz foi buscá-la para ser a “Condessa Descalça”. Também não tinha muito por onde escolher. Ou ela ou Rita Hayworth. Mais ninguém, senão uma destas duas actrizes, poderia fundir-se na personagem de Mankiewicz (o cineasta favorito dos snobs, como lhe chamou gentilmente Truffaut). Quando, no filme, Ava olhava para Humphrey Bogart, que tinha o papel de realizador, e lhe dizia: “Acho que sou bonita, mas não quero ser esse género de star. Se eu fosse capaz de representar só um bocadinho, você ajudar-me-ia a ser uma boa actriz a sério?” ela estava só a converter toda a sua carreira a uma réplica.
Desse drama deu conta Cukor, depois de a dirigir em “Bhowani Junction”: “Era extremamente inteligente. Exerce uma grande fascínio, mas está assombrada pelo desespero. É uma mulher dominada pela fatalidade. Não está de boas relações consigo mesma e, entre outras coisas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algumas maravilhosas cenas eróticas… Lavava os dentes com whisky, de uma maneira muito ordinária e muito excitante. Mas foi tudo cortado pelos censores.”
Por causa de Ava Gardner a crítica francesa produziu toneladas de prosa maiúscula e metafísica. Desde o Mito, ao Eterno Feminino, passando pelo Mistério, Enigma e Esfinge, sem esquecer o Fantomático e o Fugidio. Edgar Morin, Bertrand Tavernier, Jacques Siclier e Ado Kyrou, entre outros, disseram da sua assombração. Por mim, prefiro a desassombrada declaração de Cukor. Nela se percebe melhor como é que Hollywood tantas vezes se autobloqueou, por inflexibilidade de estratégia, e como é que, por detrás de cada imagem de glamour pode haver a contra-imagem rebelde que, com a cumplicidade de Cukor, Ford e Mankiewicz, Ava Gardner fez, afinal, prevalecer como sua derradeira imagem.

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