O fantasma faleceu

DEan

Só se morre em parte. E nem falo dos gentis fantasmas que vinham de visita, nesse tempo em que os animais falavam e o mundo parecia ser simples. Seja pelo enterro de Shakespeare, autor branco e masculino, seja pelo fim do cinema clássico americano ou pelo insustentável aquecimento global, o fantasma faleceu.

Mas insisto, só se morria até certo ponto. Mesmo em sussurro, os meus amigos João Bénard e Cintra Ferreira revivem sempre que alguém lhes relê os textos e James Dean revive em cinemascope logo que desatemos a deliciar-nos com o seu “A Leste do Paraíso”.

E temo por James Dean. Uma produtora, a Magic City Films, anunciou que Dean vai regressar dos mortos e interpretar uma personagem num filme que tem por tema os cães militares na guerra do Vietnam. A produção já começou e James Dean, rosto, tronco, braços e pernas, é reconstituído em CGI, ou seja, por imagens geradas em computador, copiadas e retrabalhadas dos filmes e fotografias que Dean fez em vida.

Só se morre até certo ponto e James Dean ficará, agora, ainda menos morto? E o que faremos com o fantasma de Dean que já tem 64 anos? “Finding Jack”, o novo filme, tem dois realizadores. Falaram com Dean?

 Voltem comigo ao tempo dos fantasmas. Elia Kazan, o realizador que trouxe Jimmy Dean para o cinema, chamou-o para uma conversa. Sentaram-se numa sala nos estúdios da Warner. Kazan não sacou a Dean mais do que uns “hã”, “ó”, “ah”, “hmm”! Eis o que era Dean: um corpo contraído, um sorriso triste e uma longa lista de interjeições.  Por sinais de fumo, o que seja, Dean conseguiu dizer que tinha uma moto lá fora e se Kazan queria vir dar uma volta com ele. Saíram do estúdio pela Ventura Boulevard e, calculo que já existisse, pela 134 Ventura Freeway. Se há um pavor madrepérola e de mamilos crispados, foi esse o pavor de meia hora que devastou Kazan. Lamentou para toda a vida ter sentado o intelectualíssimo rabo na Triumph, uma Trophy 500, de James Dean, a que o actor com dilacerado carinho chamava “O Dilema de Dean”. Kazan tinha o corpinho em pudim flan quando a viagem chegou ao fim, mas no seu espírito desenhara-se uma inabalável certeza: James Dean era o actor justo para a personagem de Caleb, esse quase Caim de “A Leste do Paraíso”, o romance de John Steinbeck. O que Steinbeck confirmou quando tentou passar uma tarde com ele. Detestou-o, mas disse: “Jesus Cristo! Ele é o Caleb.”

E não me venham dizer que o exemplo é frívolo. Não sou frívolo nem relapso. O filme, centrado na segunda parte do livro, tem na relação de Caleb com o pai, Adam, o seu eixo de rotação. Com um monossilábico silêncio, Dean convidou Kazan para vir a casa do seu pai. O que viu Kazan? Viu um pai pior do que Adam, desdenhando de tudo o que James Dean era, e a rejeitar tudo o que filho fazia para lhe agradar. Dean vivia, como Caleb, a raiva e a frustração do amor paterno recusado. Disse Kazan: “Aquela visita, foi a melhor sessão de casting a que assisti.”

Volto ao início e confirmo: sim, só se morre em parte. Por isso, tanto nos visitam os fantasmas de pai e mãe, dos amigos, de Marilyn ou Dean, esses fantasmas que são o brumoso outro lado do só se morre até um certo ponto.  “Finding Jack”, ressuscitando James Dean em imagens geradas por computador, mata o fantasma. Este novo e virtual James Dean não se esconde na fortaleza dos seus monossílabos, não arrasta para a vertigem e loucura, numa Triumph, o seu realizador, não se torce psicótico quando o pai lhe recusa os beijos. E é essa vida vivida que pinta de maravilha a ficção.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Testemunho de um fantasma

elva zona
Elva e o marido, em cima. Muito jovem, em baixo

Elva Zona nasceu no Greenbrier County, situado no meio das montanhas Allegheny, em West Viginia. Cara redonda, nariz fino e direitinho, maçãs do rosto bem definidas, boca carnuda e uma franja a cair-lhe sobre a testa, que ela compunha de risco ao meio, não admira que tenha tido um filho aos 22 anos, em 1895. Para desassossego materno e da comunidade, sem que ninguém soubesse quem era o pai.

Um anos depois, chegou ao County um jovem vindo de nenhures, à deriva e sem passado. Erasmus (ou Edward Shue) foi trabalhar com o ferreiro local. Fazendo curta uma história curta, em Outubro de 1896 conheceram-se, apaixonaram-se e logo casaram. Contra a vontade de Mary Jane Robinson Heaster, a mãe de Zona.

A 23 de Janeiro de 1897, Erasmus, ocupadíssimo na oficina situada no cruzamento de caminhos acidentados bons para o negócio, pediu a um miúdo, Andy Jones, que lhe levasse, “se não te importas de me fazer esse favor”, um recado à mulher. Com uma confiança de século XIX, Andy foi e ao abrir a porta da casa viu, ao fundo das escadas, o corpo inanimado de Elva, as pernas bem juntinhas, braço esquerdo sobre o ventre, o direito estendido ao lado da cobiçada anca. Os abertos olhos de lua cheia a contemplar a longínqua eternidade.

O miúdo correu e todo o vale soube da morte de Elva. Edward foi o primeiro a chegar. Sozinho levou o corpo para o quarto e sozinho fez todos os preparativos – lavar, escolher roupa e voltar a vestir – para que Elva pudesse ser dignamente enterrada. Quando o Dr. Knapp chegou para examinar o cadáver, Edward (já ninguém lhe chamava então Erasmus) manteve-se firme, choroso, apaixonado, ao lado da mulher. Contou o Dr. Knapp, não sei se numa das tabernas do County, que Edward gritou furiosamente quando ele tentou observar o pescoço da falecida. Mas a morte foi declarada natural, presumindo-se relação com alegada gravidez. A voz discordante da mãe voltou a fazer-se ouvir: “Foi o diabo que a matou.”

Durante a vigília, a devoção de Edward a todos espantou, vinte quatro horas ao lado do silêncio de Elva, a aconchegar-lhe a cabeça com mais almofadas, “era assim que ela gostava de dormir”. Até que, num caixão inacabado, providenciado pelo Handley Undertaking Establishment, o funeral se fez.

Funeral feito, dúvidas não desfeitas. Pelo menos para Mrs. Heaster, a mãe. Estranhou que Edward tivesse recusado o lençol da vigília e estranhou um cheiro peculiar. Lavou-o e do lençol branco correu para a água uma cor vermelha de sangue *. A  seguir, o lençol branco ficou vermelho e a água outra vez limpa. A mãe viu no bizarro acontecimento o sinal que confirmava as suas amantíssimas suspeitas. Rezou, todas as noites rezou, para que o Senhor lhe desse um sinal. À quarta noite, Elva, irradiando luz e justiça, apareceu à mãe e revelou-lhe toda a verdade.

Armada deste novo poder, Mrs. Heaster moveu céus e terra o que incluiu, é claro, o procurador local. Ciente de provável negligência, o procurador determinou a exumação do cadáver e adequada autópsia. Edward opôs à determinação todo os seus músculos de ferreiro. Inútil. O exame fez-se e o que o luminoso fantasma de Elva tinha dito à mãe foi confirmado pelo corpo corrupto: “broken neck”, disseram os médicos, apontando para a cabeça que Edward amorosamente acomodara entre almofadas.

No julgamento, a acusação preparou a mãe para nunca falar do fantasma da filha. Mas a defesa julgou que seria boa estratégia invocar o assunto, descredibilizando assim a testemunha. Mrs. Heaster juntou argúcia à sua sinceridade de mãe e a defesa apercebeu-se da armadilha e recuou. Tarde demais, o fantasma de Elva já estava de pleno direito na sala e de nada valeram as recomendações do juiz para que os jurados não considerassem ter ouvido o que de facto tinham acabado de ouvir. Dez deles declararam Edward culpado e condenaram-no à forca, os restantes a prisão perpétua.

Se agora, passados 122 anos sobre a sua morte, alguém passar pelo County, perto do cemitério onde está sepultada Elva Zona Heaster, encontrará um marco alusivo com uma inscrição simples:

 “Enterrada no cemitério ao lado está Zona Heaster Shue. A sua morte em 1897 foi considerada natural até o seu espírito aparecer à sua mãe descrevendo como tinha sido morta pelo marido, Edward. A autópsia ao corpo exumado confirmou o relato da aparição. Edward, considerado culpado de assassínio, foi condenado a prisão do estado. É o único caso em que o testemunho de um fantasma condenou um assassino.”

Moral da história: não há fuga, rejeição, elegante assassínio que liberte do amor. Amor que é amor nunca acaba. Nem com morte danada. Toda a mulher amada  é um fantasma.

* O precipitado vermelho que Mrs. Heaster viu no lençol era o resultado da reacção dos ácidos de ferro (com que trabalhavam os ferreiros) com o hidróxido de sódio dos sabões com que se lavavam. O estranho odor tem que ver com o ácido muriático usado na formação dos ácidos de ferro. Estes dados foram decisivos para a acusação do procurador.