A bailarina adormecida

Se pensam que escrevi agora este artigo, desenganem-se. Publiquei-o no Semanário,  a 18 de Novembro de 1989. A RTP 2 ia exibir Party Girl, filme de Nicholas Ray cuja raison d’être era, da cabeça aos pés, passando pelas pernas, uma mulher, Cyd Charisse. Fora bailarina, Nicholas Ray sabia que ela era uma actriz.

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A bailarina adormecida

As pernas de Cyd Charisse pediam seda. De Gene Kelly a Vicente Minnelli, não houve cineasta que o não soubesse. Em Party Girl, chamado em português, com relativo despropósito, A Rapariga Daquela Noite, Nicholas Ray não o ignora, mas põe-se a pensar noutra coisa, ainda que os espectadores fiquem sempre, de olhos arregalados, a pensar na mesma coisa.

Cyd Charisse nasceu em Singin’ in the Rain. Há outros títulos antes, mas quem é que quer saber deles! Não chovia quando pela primeira vez ela aparecia no filme. Nem sabemos se é bem ela, se é um favor dos deuses aquela perna longuíssima que a câmara de Gene Kelly e Stanley Donen percorre lentamente, em êxtase e reverência. Collants de seda negra a rasgar o vestido verde. Com essa imagem, e como reincarnada Loulou, Charisse dança o «Broadway Ballet». Vamp para o consolo de gangsters. E voltou a ser vamp entre gangsters, ao lado de Fred Astaire noutro famoso bailado («Girl Hunt») de outro famoso filme Bandwagon de Minnelli.

Só falta falar de mais três filmes, para citar os cinco musicais que fizeram dela a única rival de saias de Fred Astaire e Gene Kelly: Brigadoon, It’s Always Fair Weather e Silk Stockings. No primeiro, vinha do fundo do tempo e da lenda, belíssima e irreal como nos contos de fadas. Entrava aos beijos em Fair Wheather e tão depressa punha Gene Kelly K.O., como, de blusa e saia verde (a cor dela), atirava ao tapete um ginásio cheio de pugilistas. Em Silk Stockings, era a mesma «camarada Ninotchka» que Greta Garbo fora para Lubitsch. E onde pela primeira vez na tela se vira Garbo a rir, víamos outra, outra e outra vez Charisse dançar. De meias de seda, que vestia depois de tapar os olhos ao retrato de Lenine.

Em Party Girl, reparem como essas anteriores imagens de Cyd Charisse constituem o fundo da personalidade da sua personagem no filme. Num filme de ouro e púrpura, Charisse foi o que Nick Ray acreditava que ela podia ser: bailarina pelo passado, actriz trágica em cada plano. Chamou-lhe Vicki Gaye, bailarina adormecida, corpo cansado de mulher, sempre a deixar a cair aos pés a pele de um casaco.

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Grandes cenas do cinema: Singin’ in the rain

Esta é a quarta das dez cenas mais marcantes da história do cinema que eu escolhi para apresentar no evento O Gosto dos Outros, que a Gulbenkian organizou. Já tive uma cena de melodrama, outra de comédia, outra de tragédia. Chegou a vez do glorioso musical.

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SINGIN’ IN THE RAIN, 1920, de Gene Kelly e Stanley Donen (Serenata à Chuva)
cena de Gene Kelly a dançar o tema do filme

Vamos agora dar um grande salto no tempo. Passemos para uma época em que o cinema já leva 20 anos a falar. Até já canta e dança. A humanidade e o século XX passaram pela experiência da II Guerra Mundial, que inaugurou uma nova ordem do mundo, com supremacia americana. Se pensarmos bem, o cinema foi mesmo um dos grandes estandartes dessa supremacia.

A organização do cinema americano numa poderosa indústria, com sólidos estúdios atinge, nos anos 50, o seu ponto mais alto. E o género que melhor exprimiu o mais cândido optimismo dessa década e das anteriores foi o cinema musical. Há uma tonelada de cenas que se poderiam escolher, dos grandes números musicais de Busby Berkeley aos de Vincente Minnelli, cenas com o diáfano Fred Astaire ou com o atlético Gene Kelly. Era preciso escolher, era preciso prevaricar e sair da lei, e eu escolhi, criminosamente, a favor de Gene Kelly.

OK, perguntam-me, mas pelo menos o tipo dança com a Cyd Charisse? O pior é que eu sou um criminoso incompetente. Assaltei a loja da Tiffany’s e venho de lá sem os diamantes. Na cena que escolhi, Gene Kelly dança sozinho. A Cyd Charisse nunca me perdoará.

Quando vemos um filme, todos nós praticamos uma coisa a que se chama a suspensão da descrença. Ou seja, deixamos de desconfiar e passamos a acreditar que é verdade o que estamos a ver. No caso de um musical, fazemos uma dupla suspensão da descrença. Não só acreditamos que é verdade, como achamos que a forma cantada e dançada de representar são normais elementos do quotidiano. E é por isso que, a mim, esta cena de Gene Kelly a dançar à chuva, me parece uma das mais eufóricas afirmações da gentileza humana que o cinema foi capaz de nos dar.

O nosso melhor lado, a parte bon­dosa do nosso ape­tite sexual, a galan­te­ria, uma certa gra­ci­o­si­dade iró­nica da espécie que somos, estão espelhadas aqui, nos movimentos do corpo apaixonado de Kelly, na forma como ele se casa com o cenário e com os movimentos de grua da câmara.

E seria uma cobardia, não dizer o essencial: o corpo de bailarino, o corpo de Gene Kelly não se limita a fazer, o corpo exprime. Há linguagem no corpo de Kelly, as pernas dele pensam, os pés conceptualizam. Muita treta se tem dito da falta de corpo na arte do Ocidente e do reprimido corpo judaico-cristão. Ora o corpo está aqui, vimo-lo aqui, nesta cena e é um corpo patente, potente e contente. Vêmo-lo exuberante, sem sombra de repressão ou depressão. E o grande cinema musical, que este Singing in the Rain aqui representa, é a afirmação das inúmeras e felicíssimas posições com que dois corpos podem enlaçar-se, rodar, saltar, encaixar-se.

Eu acredito que há extra-terrestres e que um dia hão-de invadir isto tudo. Nesse dia, devemos pô-los a ver esta e outras cenas dos grandes filmes musicais. Se os virem, os extra-terrestres olharão para nós com misericórdia e simpatia, por descobrirem que, quando cantamos, quando dançamos, somos gentis, amáveis, escapistas, optimistas e infinitamente generosos. Seja Gene Kelly o nosso embaixador. E Cyd Charisse, está claro.