Já andava com vontade de uma lista parva. Esta é de maridos.
Frank e Ava, Ava e Frank
Impressiona tanto a brevidade da lista, como a escassa duração da soma dos anos de casamento.
Ava Gardner, linda como era, nasceu e foi criada na arcana platitude do algodão. Nasceu numa quinta, no cruzamento de duas estradas, na noite de Natal. Uma estrela, portanto, mas descalça e de língua afiada: não tinha problemas com palavras, umas vezes mais redondas, outras mais compridas, como fuck, dick ou cunt. Disse, o que não me desmente: “When I lose my temper, honey, you can’t find it any place.”
Casou, a primeira vez, aos 19 anos, com Mickey Rooney. Casaram de 10 de Janeiro de 42 a 21 de Maio de 43. Não durou um ano e meio. Quando se casou com ele, era virgem e só tinha lido dois livros: um, a Bíblia, o outro, o Gone With the Wind. Imaturos os dois – Rooney tinha 21 – há quem diga que foi essa “falta de leituras” que matou o casamento. Ou talvez não. Ava confessa ter-lhe ficado a dever uma coisa: foi com ele que descobriu que gostava de sexo. E quanto.
Da segunda vez casou com o, se não me engano, clarinetista e big band leader, Artie Shaw. Uma coisa com sabor a sentença judicial: um ano e pouco mais de um dia, de 17 de Outubro de 45 a 25 de Outubro de 46. A que se deve acrescentar, ainda a título penal, dois anos de analista pagos pelo famoso músico. Shaw era um male chauvinist, segundo ela, que a intelectualizou q.b., proibindo-lhe os bestsellers e os discos de Sinatra. Ironia do destino, Shaw, depois do divórcio, casou-se com a autora do Forever Amber, romance que lhe tirara à bruta das mãos, e Ava com quem já se vai saber.
Casamentos curtos e sucessivos, menos por inconstância da apaixonada Ava do que pela cabeça no ar dos maridos que a estatística atesta. Rooney e Shaw fartaram-se de casar e descasar: juntos, somam 16 mais ou menos felizes enlaces.
Sinatra foi o terceiro marido de Ava e – desta sim – só pode ter sido por amor. O rouxinol de blue eyes estava então nas lonas, no ponto mais baixo da carreira. Puxava pelos bolsos das calças e nem um chavo lhe saía para comprar brinquedos aos filhos de casamento anterior. Ainda menos para pagar o bilhete de avião para África, onde Ava iria filmar Mogambo com John Ford. Ava pagou-lhe com gosto as contas, depois de terem casado a 7 de Novembro de 51. Quando se divorciaram, a 5 de Julho de 57, já Sinatra voltara aos sucessos e à fortuna dourada. Foram quase 6 anos. Devem ter-se gostado muito, o que mais se pode ver em pequeninas coisas: Frank só lhe chamava o que todos gostaríamos de lhe sussurrar, angel; Sinatra, durante o namoro, deu-lhe um cão, um Corgi galês, e Ava teve sempre com ela para o resto da vida um Corgi galês; ao fim de um ano e meio de intimidades começaram a separar-se e a reconciliar-se – ou, como explicou Ava: “Casei-me 3 vezes e divorciei-me 5” (o que é mesmo verdade porque, tanta era a pressa que de Shaw se divorciou primeiro no México e depois nos EUA; e de Sinatra no Nevada, depois na Califórnia).
Depois de Sinatra, nunca mais. 33 anos sem casamento. Nesses anos, mas já nos anteriores de casamentos ou entre eles, preencheu a sua solidão dormindo com tipos cheios de dinheiro, toureiros e desconhecidos que encontrasse num bom bar, ou seja pretty much everyone else, mas nunca com Marlon Brando, como fez questão de lhe dizer ao telefone, quando leu uma entrevista dele que o insinuava: “Marlon, if you believe we’ve been lovers your brain had gone soft”. “Unfortunateley not only my brains, darling”, desculpou-se o actor. Ava perdoou-lhe, claro.
Lista de maridos de Ava Gardner
Mickey Rooney – 1 ano e 5 meses Artie Shaw – 1 ano e alguns dias Frank Sinatra – quase 6 anos
A 15 de Abril de 1989 escrevi este texto sobre Chaplin, na revista do jornal Semanário, sob a asas de Victor Cunha Rego e João Mendes, a convite do meu falecido amigo Matos Cristovão, num jornal onde também escrevia o Fernando Sobral, para só falar de gente por quem tenho muito carinho. Já passaram mais de 30 anos, já reciclei um ou outro parágrafo para novos artigos, agora reciclo o artigo inteirinho, sem tirar nem pôr. Passaram 30 anos, tinha eu 36, e não mudei assim tanto: é o que penso do genial Chaplin.
The Gold Rush
Devia ser mau como as cobras. Aos cinco anos, quando o pai morreu, Chaplin seguia no cortejo fúnebre mimando o sofrimento e as expressões de dor da sua mãe. Sidney, o irmão mais velho, não resistiu e desatou à gargalhada. Pode olhar-se com alguma benevolência para o episódio, mas pode também encarar-se como sintomática a atitude de Chaplin.
É boa altura, em pleno centenário de Chaplin, para vir com esta conversa. Amanhã é dia de fogo-de-artificio e os festejos, hoje, já vão em bom ritmo. Haverá missa cantada e não faltarão responsos para incensar um dos maiores génios do século (que era, de facto), e a louvar a torrencial humanidade de Charlot (que eu não duvido que a seu modo ele tivesse, entenda-se).
Com aquela visão, perde-se, todavia, o essencial. E num centenário comemorado com inteira justiça, também não caem os parentes na lama a ninguém se se disser a verdade, nada mais do que a verdade. Ora, grande parte da verdade é que Charles Chaplin foi muitas vezes mau como as cobras e, como escreveu Thomas Burke num testemunho que o convívio íntimo torna precioso, durante duas horas podia ser a pessoa mais amável com quem já alguma vez se conversara para, sem a mínima razão aparente, se transformar na mais petulante e áspera das pessoas».
Pode objectar-se que «personalidades mercuriais», igualmente capazes deste tipo de variações, existem às centenas e particularmente nos meios artísticos. De acordo! Mas neste ponto ainda a procissão vai no adro. Falta, por exemplo, referir que Chaplin nunca escondeu serem a fama e o dinheiro os fins últimos da sua criação. E falta referir a sua peculiar e brutal relação com as mulheres. Lá chegaremos.
Não se pode passar em branco o sacrossanto argumento «de ordem social» que muitos ilustres comentadores ou biógrafos de Chaplin serão tentados a invocar. É sabido que Chaplin passou uma infância miserável e que, depois da morte do pai, levou vida de cão, internado num orfanato e com a mãe num asilo de alienados. Não é menos verdade que a primeira vez que atiraram com ele para cima de um palco, foi para substituir a mãe, minada pela doença, causando a surpresa do público e provocando uma autêntica chuva de moedas no palco. Chaplin interrompeu o número para apanhar o dinheiro e pediu desculpa ao público dizendo que recomeçaria logo que tivesse deixado as moedas no regaço materno. Ganhou mais risos e mais moedas.
Não sei se acham graça. Eu acho macabro. E creio que Chaplin deve ter achado a mesma exactíssima coisa. A melhor prova do seu ressentimento pode encontrar-se nos seus filmes. Sobretudo nas situações que abordou nos primeiros anos da sua carreira: o trabalho, a vida social e o amor são desenhados de uma forma inumana, brutal e desapiedada. Nos primeiros e nos últimos dos seus filmes, porque de Charlot no Cinema ou Charlot Pianista ou Charlot Boémio a Monsieur Verdoux ou a Um Rei em Nova Iorque a monstruosidade é uma constante, sendo evidente o comprazimento de Chaplin em extrair da mais acabada tragédia ou do mais destemperado ridículo o riso e a comédia.
Trágico foi o mote que ele glosou em A Quimera do Ouro. O filme baseou-se num facto verídico: um grupo de pesquisadores de ouro perde-se durante o mais rigoroso Inverno. Os sobreviventes, acossados pelo frio e pela fome, comem os cadáveres dos que vão perecendo. Foi este o material abominável de partida para A Quimera do Ouro, porventura uma das maiores comédias de todos os tempos.
Mas houve ainda detonadores mais ignóbeis: o primeiro filho de Chaplin nasceu malformado e morreu três dias depois. Dez dias mais tarde, Chaplin começou a fazer testes a miúdos para um filme que se haveria de chamar The Kid. O que pode querer dizer (e eu acho que quer) que a crueldade de Chaplin começava nele mesmo, sem qualquer indulgência.
As histórias dos seus casamentos são igualmente reveladoras. Depois de ter acabado o affair com Edna Purviance – um concubinato estável e feliz de três anos – Chaplin encontrou uma rapariguinha de 16 anos numa festa de Samuel Goldwyn. Na altura, Chaplin era o mais belo solteirão de Hollywood, «com os dentes mais brancos que já alguma vez se tinham visto, os mais azuis dos olhos e as mais negras das pestanas», como rezavam as crónicas da época. Mildred Harris, como se chamava a menina, compunha na perfeição o ideal feminino dele. Quando deram por isso ela estava grávida (ou, como veio depois a saber-se, clamava estar). Chaplin não podia arriscar o escândalo e não teve outro remédio se não casar. A chegada dela ao registo ele teve um comentário sibilino: «Sinto um bocadinho de pena dela.» Não era caso para menos. Foi a catástrofe. Primeiro, verificou-se que a gravidez era falso alarme; segundo, Chaplin considerava que o casamento lhe debilitava a inspiração e lhe arruinava a carreira; terceiro, houve o episódio da morte do primeiro filho. Dois anos depois, Mildred divorciava-se acusando-o de crueldade mental. Tinha boas razões para isso, como o próprio Chaplin reconheceu.
Outra faceta – a negação quase absoluta do sentimentalismo em geral atribuído a Charlot – surge com o «coup de foudre» Pola Negri. Foi o encontro entre a Rainha da Tragédia (vinda das mãos de Lubitsch, com quem fizera Madame Dubarry) e o Rei da Comédia. Da celebrada palidez dela dizia-se só ser comparável «à textura cremosa das pétalas de uma camélia». Eram vistos mais agarrados do que a lapa à rocha e, legitimamente, Hollywood preparou-se para o casamento. Que não houve. Ele veio dizer que era demasiado pobre para se casar e que o «meu mundo é o trabalho do dia-a-dia, que me mantém ocupado e me afasta dos clímaxes do sentimento.» Pola Negri tornou ainda mais prosaica a versão dele: «Sou demasiado pobre para casar com Chaplin. Ele precisa de uma mulher rica.»
Ainda o episódio Negri não arrefecera quando começou o tormentoso romance com Lita Grey. Era o «anjo da tentação» de The Kid. Tinha doze anos. Três anos depois voltou a aparecer a Chaplin e, com quinze anos e uns meses, já era uma mulher crescidinha. Fez os testes para leading lady de A Quimera do Ouro, acabou em leading lady de Chaplin. As filmagens começaram e, de repente, outra vez, ela informa-o de que passara ao estado interessante. Segundo as leis da Califórnia, sendo ela menor – e se era – Chaplin arriscava-se a ser acusado de violação, punida com 30 anos de prisão. Antes o casamento que tal sorte. Corria então o escândalo Ince que, por via indirecta, tocava Chaplin. O multimilionário R.W. Hearst abatera o produtor e realizador Thomas Ince, que surpreendera à média luz com Marion Davis, sua mulher. Constava que ela se encontrava com Chaplin e, à média luz, Herst deve ter tomado Ince por Chaplin, tanto mais que tinham estatura semelhante. Chaplin foi ao funeral de Ince e, três dias depois, casou com Lita Grey. Foi o funeral de Lita. Primeiro, perdeu o papel em Gold Rush; segundo, sofreu os vexames de várias infidelidades de Chaplin, envolvendo Marion Davis, Georgia Hale (a nova protagonista de Gold Rush) e até Merna Kennedy, uma amiga sua que seria a protagonista de The Circus. Abandonada num casarão de Beverly Hills, Lita vingou-se pedindo o divórcio num documento histórico, em que acusava Chaplin de tudo, mesmo de práticas sexuais cuja heterodoxia a lei californiana estritamente interditava.
Vai longo o requisitório contra Charles Chaplin. Poderia acrescentar mais mil pontos a este conto, mas não vejo a utilidade. Além dos aspectos técnicos, da sua espantosa mímica, do seu entendimento do actor como bailarino e da sua concepção perfeccionista do cinema, a genialidade da personagem que criou, Charlot, está na desumanidade de Chaplin. Nunca teve limites. As tragédias próprias ou alheias são o capital cómico dos seus filmes; o seu narcisismo fez com que centrasse em si mesmo os seus filmes; o seu ressentimento contra o mundo impôs às suas sátiras um além de todas as convenções, que nem mesmo Buster Keaton terá cultivado. E só por isso toda a humanidade se revê nos seus filmes. Porque é assim que somos: cruéis, sacanas, perversos, preguiçosos, aldrabões, mesquinhos, avaros, infiéis. Assim somos e assim fazemos. E se alguma coisa esperamos é, ainda e sempre, o anjo da tentação. Alguém disse sentimento? Mas poderá haver mais sentimento do que este?