O JL-Jornal de Letras pediu-me uma espécie de autobiografia de editor: como é que eu me estatelei, livros abaixo, ao comprido, e o que me faz continuar a cirandar por esta orgia.
Há acusados, julgamento e culpados. No fim, espero a vossa absolvição.

Tal como Manoel de Oliveira e Agustina diziam da alma, o livro é um vício. É triste, mas digo a verdade: foi a minha mãe que me meteu no vício. No musseque Sambizanga, em Luanda, aos meus cinco anos, de um livrinho religioso de capa dura, a Alice, minha querida e devota mãe, lia-me textos de elevação moral grávidos de emoção. É preciso ter já muitos calos no coração, como os que o macaco tem no escuso sítio que não nomearei, para não sermos sensíveis à beleza que há nestas palavras: «Ave Maria cheia de graça / O Senhor é convosco, / Bendita sois Vós entre as mulheres, / E bendito é o fruto do vosso ventre.» Isto é mais do que rezar, é juntar palavras numa harmonia e num ritmo que afagam os cabelinhos do sublime. E à Avé-Maria seguiam-se histórias edificantes de pescadores que enfrentavam noites de tempestade no breu do alto mar, ou a história de um inocente atirado para a prisão por um rei ímpio e cruel, ou ainda a de um mártir, que preferia perder a vida a renunciar à sua fé e ideais.
Um miúdo de cinco anos não resiste aos efeitos psicoactivos desta poderosa droga. As leituras da minha mãe, a forma como, na folha de papel, as palavras se combinavam e entravam em combustão, tudo isso gerava em mim um estado de euforia infantil, uma certa vasodilatação, a capacidade até de andar sobre as águas se me apetecesse andar sobre as águas. O livro foi, já se vê, a minha colher de heroína.
Na adolescência, esse estado de alucinada levitação foi reforçado pelo ramo de uma árvore. No quintal da minha casa havia mamoeiros, uma bananeira, um sape-sape, uma pitangueira, uns humildes e bravos jindungueiros, mas a figura nobre era uma mangueira robusta e silenciosa. Eu era então um ágil e saudável saguim, trepava pela mangueira, saltava de galho para galho, e sentava-me a ler na confluência do mais sólido ramo com o amplo tronco dessa sábia mangueira.
Lia uns três metros acima do chão, entre a folhagem verde e o amarelo avermelhado das mangas maduras. Tinha o sol e o céu de Angola como tecto e testemunha. Dos 10 aos 15 anos, eu vivi nessa mangueira as aventuras de cem vidas. Apaixonei-me, salvei donzelas em apuros, assaltei bancos, fui um índio Yaqui de Zane Grey, fui o famoso xerife Buck Jones.
Levante-se o culpado: João Bénard
E peço que, para se juntar à minha mãe, se levante o segundo culpado: João Bénard da Costa. Já em Lisboa, na Cinemateca, para cada ciclo de cinema fazíamos, desde 1980, um catálogo. Eu era um dos servos da gleba do João Bénard: aprendi a escrever e rever textos, a maquetá-los com um gráfico. Ainda não havia Apples e muito menos Adobe In Design. Juntavam-se textos e fotografias à mão e havia tesouras, papel e cola por todos os lados. Vinha depois o fim da linha de vício: entrar nas gráficas para cheirar tintas e lamber papel.
Lembro-me da primeira vez que pus o pé num desses antros. Eram oficinas gigantescas, do tempo da gloriosa revolução industrial, num dos edifícios do que hoje é a LX Factory. Fui com o João e a Rita Azevedo Gomes. Íamos imprimir o Alfred Hitchcock nas máquinas de rotogravura, uma técnica de impressão que permitia aplicar a tinta em quantidades diferentes, de acordo com a profundidade dada a células gravadas num cilindro de cobre e bronze de umas rotativas mais majestosas do que o rio Tejo. Estávamos nos anos 80 e, no fim, tínhamos na mão um livro que parecia ter chegado de 1930. Fiquei com muita vontade de fazer também aquilo. Quem é que não quer viajar de caleche no tempo?
O João deu-me, depois, carta branca – é certo que ele ou dava carta branca ou não dava carta nenhuma! Fui a Copenhaga e fiz com o artista plástico Carlos Nogueira o catálogo do Cinema Dinamarquês, com o místico Dreyer como protagonista. O que trabalhei com o tipógrafo Serrano, indefectível MRPP, e o meu amigo Luís Miguel Castro (que era, ó se era, il miglior fabbro), nos catálogos do Antonioni, do Coppola, do Cinema Soviético, que são dos livros mais bonitos em que pelo menos mais de um dedo meu por ali andou. Pequenina vaidade: todos os catálogos que fiz a solo estão esgotados e são peças de alfarrabista.
A culpa de duas velhas senhoras
Et pourtant eu não tinha ainda as cartas de nobreza (ups!) do editor. À minha mãe e ao João Bénard, junto agora, no banco dos réus, duas velhas senhoras, duas almas subversivas e incendiárias. Quem fez de mim editor, foram Mécia de Sena e Agustina Bessa Luís. Talvez tudo tenha começado em Santa Bárbara, na casa da Randolph Road, de Mécia. Ainda na Cinemateca, fui à Califórnia falar com Coppola e rever, com a «mulher de Jorge de Sena», como um dia orgulhosamente a ouvi dizer, um livrinho que reunia os textos dele sobre cinema. Mécia acolheu-me por uma semana. Empatia garantida, que ficaria para a vida, Mécia levou-me ao sanctum sanctorum: ali estavam os manuscritos e dactiloscritos de Sena. Mais: os inéditos, tantas cartas, as de Sophia de Mello Breyner Andresen, as fulminantes peças satíricas, as suas famosas e impublicáveis Dedicácias. Eu tinha visto e tocado o Graal.
Passaram os anos que se contam pelos dedos das mãos, quase a acabar o século XX, já eu levava sete anos de ganhar vida regalada e cosmopolita na SIC, deu-me o que Billy Wilder e Marilyn Monroe imortalizaram como o seven year itch. Uma comichão do caraças: o meu amigo Francisco Pinto Balsemão que me desculpe, mas a SIC já não me bastava. Viajava de Los Angeles ao Rio ou Hong-Kong e ao pequeno resort saudita e da máfia russa chamado Cannes, e até, das duas às seis da matina, programava cultura de alto lá com ela nas «Noites Longas da SIC». Mas queria mais.
Com dois amigos, como talvez nunca mais venha a ter, fundei a Três Sinais editores. Um lema: a mais pequena editora do mundo. Queríamos fazer livros que fossem também uma girândola dos sentidos: grande dimensão, formatos raros, papel que desse vontade de acariciar e beijar. Um livro e meio por ano era a forma de nos roçarmos pela felicidade. E se o primeiro veio directo dos tesouros de Mécia de Sena, o segundo nasceu de uma ousadia premiada. Talvez instigado pela Antónia, minha mulher e agustiniana obsessiva, desafiei Agustina a escrever sobre Paula Rego e desafiei Paula Rego a deixar-nos usar a sua pintura nesse livro, que eu imaginava como um orgíaco sabbath. Ó se foi.
Dedicácias e As Meninas são duas preciosidades, se me perdoam a arrogância, que é assumida. Capa cartonada revestida a pano, papel Pop Set de 170 gramas que, mate, aceitava muito bem a cor, reproduzindo com fidelidade as texturas das telas de Paula Rego, uma fidelidade de Gráfica de Coimbra, que o Padre Valentim e o meu amigo Gândara garantiam. Paginámos com liberdade e liberalidade, dando grandeza e soberba a pormenores, tanto aos da pintura, como mesmo a alguns dos mais inspirados ou chocantes aforismos com que o texto de Agustina nos deslumbrava ou sufocava — o que é que se há-de dizer quando, como ela escrevia, «as mulheres conspiram, inspeccionando a sua roupa de baixo».
Arrebatador foi ter «inventado» esse livro, As Meninas. Pensei que era isso ser editor: inventar livros. A culpa maior foi de Agustina. Não só aceitou o desafio como pediu mais. E eu reincidi. Pedi-lhe uma quase autobiografia, esse Livro de Agustina, que ela começou por chamar Retrato de Grupo. E, a seguir, voltei a desafiá-la para uma Bíblia em caixa de vidro, em que também escreveram João Miguel Fernandes Jorge, Jorge Sampaio, Manoel de Oliveira, João Bénard, Eduardo Lourenço, Vasco Graça Moura. A caixa de vidro (não era bem vidro, reconheço), veio da China.
Do hobby para a indústria
Da Três Sinais para a Guerra e Paz editores foi o salto do hobby para a indústria. Quando, em 2005, saí definitivamente da SIC, decidi que seria dono e senhor de mim mesmo: nem Deus, nem chefe para todo o sempre. Num clamoroso, mas delicioso erro, escolhi o livro, a edição deles, como quem julga que se vai sentar ao fim de tarde, flute de champanhe na mão, na mais radiosa pérgula do jardim.
Voltei a Agustina e a Mécia. Na sua casa do Gólgota, Agustina aceitou escrever 11 «óperas» de intriga, traição ou sedução da História de Portugal, num livro a que chamou Fama e Segredo. Mécia deu-me a correspondência de Sena e Sophia, publicação que Sophia, num jantar abençoou. Começava, assim, em 2006, a aventura da Guerra e Paz editores, que vai a caminho dos 17 anos. Fiz, com o Ilídio Vasco, meu designer ab ovo usque ad mala, livros em madeira, (e vão dois!), a única capa do mundo, para Fernando Pessoa, feita numa prancha de madeira sem cortes ou colagens, com a lombada trabalhada a laser, e fizemos a capa que, desdobrada, tem mais de um metro para O Físico Prodigioso, de Sena.
Veio, fatal como o destino, o acidente traumático. A insolvência de um distribuidor ia sendo o golpe de mata leão no pescoço da editora. Subtraído de um ano inteiro de facturação, levei anos a dormir na mesma cama com a dívida: é uma espécie de coabitação em regime de violência doméstica, com gritos, agressões, baba e ranho e não se sai do Purgatório. Mas não falhámos uma única obrigação e renascemos.
A Absolvição
Onde está, então, a viagem de caleche no tempo? A pérgula e o champanhe? Quero dizer aos culpados disto tudo, à minha mãe, ao Bénard, a Mécia e Agustina, três mulheres e um homem, que não só os absolvo, como lhes agradeço, ajoelho e rezo. Valeu a pena. Bastava ter publicado Agustina, Sena, Sophia, o último livrinho de Vasco Graça Moura, a Estrutura das Revoluções Científicas, de Kuhn, ou o Ouriço e a Raposa, de Berlin, como em breve O Crisântemo e a Espada, de Ruth Benedict, jovens poetas como Eugénia de Vasconcellos e João Moita, ou o veterano Eugénio Lisboa, o Longo Braço do Passado, de Rui de Azevedo Teixeira. Bastava que a Guerra e Paz fosse, como é, a mais angolana das editoras portuguesas, do que é prova a monumental Antologia da Poesia Angolana, cereja a mimar o bolo. Bastava-me o Assim Nasceu uma Língua do Fernando Venâncio e a luta contra o famigerado AO90.
Os últimos cinco anos da Guerra e Paz editores, colecções de livros vermelhos, amarelos, brancos e negros, os nossos clássicos, a entrada no romance contemporâneo, a criação de uma colecção de grandes ensaios como Os Livros Não se Rendem, restituem-me ao êxtase edificante da infância, ao adolescente ramo de mangueira, três metros acima do chão, três metros mais perto do céu.
E é que nem precisa rezar as três Avé-Marias, está ungido da graça livresca.
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Estimada Bea, obrigado pela bênção. Bem falta me faz 🙂
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Graças a Deus pelo Tio Patinhas e o Rato Mickey que salvaram gerações dessa armadilha do livro.
Comecei um novo blogue para elogiar os tempos muito modernos, gloriosos, que vivemos…
https://aovolantedochevroletpelaestrada.blogspot.com/
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Oi Maturino, perigoso leitor, prometo que vou lá ver. De chevrolet!
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