
Vou expor-me ao ridículo e jurar que a Vila Alice, meu bairro de Luanda, era afinal um bairro de Nova Iorque. Ficaria ali, encastrado entre o Soho e a Little Italy.
Pode parecer que o meu forte não é a geografia. Enganam-se. Pisei a Califórnia e foi logo como se respirasse de novo, por todos os poros e com narinas boca-de-sino, o ar start-up da Angola de 1973. O mundo é enorme, é maior do que as duas orelhas do Dumbo, mas por ser tão grande o mundo repete-se. Há um bocadinho de Alfama a subir para o Sacré Coeur e havia um bocadinho dos anos 50 de Bronx e Newark na Luanda dos anos 60.
Na Alberto Correia, a minha rua da Vila Alice, havia três mercearias. Mas só a mercearia do Senhor Manel, se pode gabar de ser o espelho borgesiano das mercearias do “Bronx Tale”, único e gentil filme de que Robert De Niro foi o realizador, ou dos romances abusivamente autobiográficos de Philip Roth.
Na mercearia do senhor Manel não se vendiam metáforas, mas havia duas portas de entrada de metonímica afinidade. A canónica, das horas legais, precedida por três degraus que podiam, se fosse mais devoto o continente, ser os degraus de uma capelinha setecentista. Fechava à hora de almoço e, se ainda me lembro, fechava outra vez quando o sol se punha. Fora de horas, entrava-se na mercearia por uma camuflada porta lateral que dava para o pátio, onde à noite o senhor Manel punha uma mesa guerreira para partidas de sueca que levantavam alaridos de Aljubarrota, não adivinhando ainda o trágico Kifangondo, que viria um dia. De uma tomada interna, o senhor Manel sacava uma puxada e era à luz de uma gambiarra que se batiam as cartas. Cruzavam-se Nocais e Cucas e nós, candengues, ouvíamos da boca dos mais velhos o que nem hoje nos atrevemos a repetir.
Podiam ser, se fossem sicilianos, mafiosos do Bronx. Estavam ali, de gordos ou ossudos rabos enfiados nas cadeiras, apostas sobre apostas, fumo a entrelaçar-se em fumo, até às quatro, cinco da matina. Um dia, um deles tentou pisgar-se às três da manhã. A perder, o velho Augusto lançou-lhe um labéu capaz de gelar os trópicos: “Parceiro da merda, joga duas partidinhas e dá de frosques.”
Era um quintal de filme, podia estar nas traseiras do “Rear Window”, de Hitchcock. Jogavam-se cartas como num “film noir” e colados aos cigarros, a um whisky com 7up, estavam Edward G. Robinson e Walter Brennan. Ria-se como se ria na prisão do “Rio Bravo”.
Era a vida, mas não era nenhum atraso de vida. Repetindo o ritmo de um quintal mafioso dos anos 50 de Nova Iorque, o pátio de mil suecadas de Luanda antecipou o que depois sacudiria a América. Os carros dos primeiros anos 60 eram as carrinhas Ford, uns Chevrolets e Plymouth, espadas americanos. Por pouco tempo. A luz da gambiarra da mercearia do senhor Manel iluminou, oscilante, a chegada do Simca do meu pai, do Triumph da bela Mimi, do Fiat de abertura pela frente do amável lixivieiro, do Alfa-Romeo do largo dos Cunhas, do Volkswagen preto do senhor Pinto, do Citroen e do BMW da família dos engenheiros. Se em Detroit estivessem atentos à Vila Alice, saberiam, em meados dos anos 60, que a indústria automóvel americana estava condenada.
Tudo o que os japoneses fizeram depois – a baratíssimos Hondas, Mazdas, Toyotas – foi só um golpe de misericórdia. O mundo mudou sim, mas à luz ténue da gambiarra do pátio da mercearia do senhor Manel. Na Vila Alice, esse bairro meio-judeu, meio-italiano, de Nova Iorque. Digo eu que, agora sei, de carregada nostalgia, que Alice doesn’t live here anymore. Nem voltará a viver.
Que maravilha Manuel!
Que bela memória é tão bem composta de sentidas -e significativas-analogias.
Que bem sabem as tuas crónicas!
Gd abraço!
Enviado do meu iPhone
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Acho eu que ainda bem que o bairro se chamava Vila Alice e deu um Manel de mercearia e mais um Manel livreiro e de filosofia. E mais outra gente que vamos conhecendo nestas crónicas. Pois sejam muito bem vindos.
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