
A morte tem má reputação, uma cara taciturna, diz-se. Preconceituosos, continuamos a achar que a morte é a figura insidiosa que aparece sempre ao pé de camas de madeira escura. Porém, a morte, e olhem que não é só a morte moderna, tem também ironia, sentido de oportunidade, uma multifacetada vocação que tanto é trágica como cómica.
Eu tenho um amigo que é dono de uma funerária. Tem um sentido de humor subtil, leve, com a efervescência de uma flute de Moët & Chandot, isto só para não exagerarmos nos custos desta crónica. Esse meu amigo almoça, quase todas as semanas, com outros amigos, que nasceram na mesma terra. Um deles adoeceu com gravidade. Fez biópsias, tacs, ressonâncias, o diabo a quatro, que a morte é exigente. E marcou o que se temia ser o derradeiro almoço, logo a seguir à consulta com o médico que ia ver os exames. Diagnóstico no bolso e na alma, entrou no restaurante. Os sete amigos estavam tensos, uma angústia de quem sabe o que aí vem. “Então, António?” E ele, em pé, anuncia que nada é maligno, que há tratamento e que a morte já vai longe, corrida a pontapé. Erguem-se os seis amigos, gritam besteiras, que é a forma de nós, homens, exibirmos sem vergonha uma alegria parva. Só um deles, o meu amigo da funerária, continua sentado e acabrunhado. “Porra, Joaquim, não dizes nada!”, chateiam-no os outros. E ele: “Todos para aí a festejar a saúde do António, e eu? No pobre cangalheiro ninguém pensa!”
E do restaurante da Baixa lisboeta vou directo para Santa Barbara, a cidade que, na Califórnia, Mécia de Sena me deu a conhecer. E levou-me, com Maria de Lurdes Belchior, a conhecer os restos das missões espanholas, eu um menino mimado por aquelas duas senhoras, em pic-nics de ovos verdes e bolinhos de bacalhau. Nunca fomos foi ao Lobero Theatre. Mas foi lá, no Dia das Mentiras, em 1938, a estreia de uma peça de Clifford Odets, “Golden Boy”. Em plena representação, cai, fulminado, o actor Joseph Greenwald. Não vão acreditar, mas ele tinha acabado de dizer esta linha do diálogo, a sua última réplica: “Esperei por este momento toda a minha vida.”
Nos meus tempos da SIC, comprei vários shows de variedades ingleses, mas tenho agora de confessar a Francisco Balsemão que falhei este, de que vou falar. Os Variety Shows eram feitos ao vivo e para uma espectadora especial, a rainha de Inglaterra. Num dos shows, o mágico e cómico Tommy Cooper estava a fazer o seu número. Ao vivo, claro. Chamou a assistente. Ela entrou em cena. Tudo nela era exultante. O seio mais refulgente do que néon na noite escura, a perna longa como um relâmpago, e já vos poupo ao seu britânico backside. Tommy Cooper olhou para ela e caiu. Deixou-se cair, por ser esse o seu estilo, pensaram os espectadores e riram-se. Era uma sala incapaz de parar de rir. Mesmo a estremecida assistente ria com convicção. E Cooper não se levantava. O realizador, alarmado, foi para intervalo (lembram-se?). O que tombara Cooper fora um ataque cardíaco. Tentaram reanimá-lo, mas estava morto, o que o hospital confirmou.
Em Nova Iorque, só vi ópera uma vez, de Donizetti, “O Elixir de Amor”, numa passagem com o Emídio Rangel, que meteu polícias, reféns, hospitais. Mas em 1960, o barítono Leonard Warren cantou lá, no Met, a ária “Morrer, ó tremenda coisa” do “Don Carlo”. Tinha ele a ária nos lábios – Morir, tremenda cosa – e uma hemorragia cerebral calou-o para a eternidade.
Porventura desajeitada, mas vê-se que há na morte uma certa vontade de emprestar um toque artístico a cada uma das suas aparições. Volte sempre.
Pode crer, volta sempre. Mas não me parece que seja um bom momento. É um momento necessário, ponto final no fim da frase.
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Falta saber se há ou não um glorioso parágrafo a seguir. Entreguemo-nos sem reticências ao optimismo.
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