

A culpa é da jornalista Fernanda Cachão. Desafiou-me. Faz boas perguntas. Tentei aguentar-me nas respostas. Foi uma entrevista comemorativa dos 16 anos da Guerra & Paz. Saiu tudo, tudinho, na revista “Domingo”. Ora vejam, leiam e critiquem.
Nenhuma criança sonha ser editor. Como é que foi consigo?
É verdade, a criança e sobretudo o adolescente que eu fui, se sonhou com livros, foi para sonhar com histórias de Adamastores, de cow-boys, de pupilas do senhor reitor ou de astérixes em aldeias gaulesas. Li essas e outras histórias no sólido ramo da minha mangueira, na minha casa, em Luanda, sem perguntar como se faziam os livros ou quem os fazia. Quem teve a culpa de me obrigar a pensar como se faziam livros foi o João Bénard da Costa, quando dirigiu a Cinemateca. Para cada ciclo fazíamos um catálogo e eu era um dos servos da gleba que teve de aprender a escrever e rever textos, a trabalhar com um gráfico, para arrumarmos, página a página, palavras e fotografias e, depois, a ir às gráficas cheirar as tintas e passar a mão pelo papel. E descobri que esse convívio íntimo não só não impedia um grande amor ao livro, como reforçava o prazer e lhe dava sentido.
Aqui há dias, escreveu a propósito do aniversário da sua editora:”Lembro-me que Abril de 2006 foi um mês em que nasceram várias editoras em Portugal. Dessas editoras de Abril de 2006, só a Guerra e Paz editores sobreviveu. Vamos em peregrinação. Deambulando como Ulisses”. O que é que dita a sobrevivência de uma editora em Portugal?
Optimismo, algum bom senso, contas certas e beijos na boca à realidade. Mas não sei se a receita serve a toda a gente. Vivi durante dois anos a guerra civil angolana, tinha então 22 e 23 anos: descobri que mesmo no meio da tormenta, quando todo o mundo que imaginámos se esboroa, se pode ainda ser feliz. Foi esse o meu mestrado de gestão.
Como é que a pandemia e agora a guerra na Europa afectam o negócio dos livros?
A pandemia obrigou os editores a respirar fundo e a reinventar o negócio dos livros. A situação mundial é, hoje, de claro crescimento do livro em papel, atingindo valores superiores aos valores de vendas pré-pandémicos. Isso significa que nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, Itália – ou seja, nos países que lêem – o livro sai como um resistente e um dos recursos preferidos pelos cidadãos para o conhecimento e para o prazer e emoção. O livro tem futuro.
Em Portugal, sentimos mais duramente os efeitos: fomos um dos raros países com uma quebra – e grande, de 17% – nas vendas de livros no primeiro ano de pandemia. Mas já recuperámos os níveis de 2019 e estamos em crescimento. Temo que, agora, a inflacção, a quebra de stocks de papel com um brutal aumento, e o aumento dos custos da energia que está a abalar as gráficas possa, pela frágil situação do livro em Portugal, ferir o sector: vai doer.
Portugal precisa de uma política do livro e não vai ser o miserabilismo orçamental do Ministério da Cultura que o vai resolver. É preciso que o Primeiro-Ministro fale com a APEL, a associação que representa 97% do sector do livro em Portugal, e se encontre um caminho que faça explodir a literacia e o recurso à leitura. Se não lermos, continuaremos a ser o país estagnado que temos sido, apesar da democracia, ao longo destes 40 anos.
Depois dos e-books fala-se agora muito de audiolivros. Uma moda passageira ou uma oportunidade de negócio?
O audiobook é uma realidade em países que já lêem muito, como a América, Inglaterra e mesmo França. Em Portugal é pura e simplesmente risível: nem é bolha, nem sequer borbulha. Mas queremos estar presentes, a pensar num futuro ainda razoavelmente distante.
A editora tem no catálogo alguns livros para ‘descabelar espíritos penteadinhos’ ou ir contra as modas do pensamento contemporâneo… É o espírito da missão de um editor?
Sim, em particular na nossa colecção de “Livros Vermelhos”, temos a pretensão de oferecer caminhos que nos resgatem de um pensamento único. Dou um exemplo, vamos publicar em breve, um livro de um físico da Universidade de Nova Iorque, que foi secretário na área da energia, no governo de Obama, sobre as questões climatéricas. O livro chama-se “Desconsenso: O que a ciência do clima nos diz, o que não diz e o que isso interessa” e o autor, Steven Koonin, mostra-nos como muita Imprensa e mesmo as vozes dos políticos da ONU, reclamando-se do relatório do IPCC sigla em inglês do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), apregoam um apocalipse que, cientificamente, esse relatório não sustenta.
Fomos e estamos a ser ensinados a viver como carneiros?
Diria que há uma infantilização sinistra em curso, para a qual todos contribuímos. Como se tivéssemos todos de pensar de forma uniforme e as nuances, essas maravilhosas formas de recreação e de subtileza, tivessem sido abolidas.
O politicamente correcto, tal qual o praticado hoje em dia, pode ser também uma forma de ditadura?
É decididamente uma forma de pensamento único. Sobre o essencial desse movimento “correctivo” identitarista e de género, pronuncia-se com inteligência o nosso livro “Teorias Cínicas”, demonstrando que esses discursos e teorias prejudicam acima de tudo as comunidades que juram querer servir. E um outro livro, “Woke, um Guia para a Justiça Social” arrasa pelo absurdo a vocação delirante e repressiva do politicamente correcto.
Foi prefaciador dos livros de Hitler, Marx e Mao Tse-Tung. Qual destes autores o deixou menos indisposto?
Fui prefaciador do que chamei três livros malditos – o “Manifesto Comunista”, o “Mein Kampf” e o “Pequeno Livro Vermelho” – livros que, voluntária ou involuntariamente, foram bandeiras usadas em três das maiores tragédias humanas do século XX. É de justiça dizer que Marx e Engels são de uma natureza diferente dos bárbaros Hitler e Mao. Mas é preciso também dizer que não há nenhum resgate possível do ideal comunista: as ideias do “Manifesto” conduzirão sempre a uma sociedade de violência e brutal repressão. É da natureza maniqueísta do “Manifesto”: aí começa a divisão e a legitimação do massacre.
Alguma vez esteve envolvido numa polémica por causa da autoria de uma crónica?
Já estive envolvido em polémicas, sobretudo quando fui director de programas da SIC. E não creio que se resolvam à Will Smith.
Trabalhou na televisão. Vê televisão actualmente?
Sim, pouco, mas vejo. E vejo como hoje muita gente vê televisão. Vejo o que quero e quando quero, uma série toda seguida em duas noites longas, um filme, os jogos do SLB, passeio de telejornal em telejornal.
Há alguma diferença entre as polémicas de agora e as de outras épocas?
Lembro-me que foi célebre uma polémica na televisão americana entre Norman Mailer e Gore Vidal, dois grandes escritores. À saída do debate, a polémica prosseguiu e Mailer estendeu Vidal com um murro. Do chão, Gore Vidal ganhou a polémica com a mais admirável das respostas: “Mais uma vez, Norman, faltaram-te as palavras!”
Qual o melhor filme para se ver, quando se tem dúvidas sobre a acção de Putin sobre a Ucrânia?
Há um filme recente, The Painted Bird, que não passou em Portugal, que dá um retrato da devastação física, emocional e moral que a guerra pode causar. É um filme de um miúdo perdido, escravizado, perdido entre gente hostil: é fisicamente difícil até de ver e é essa dificuldade que nos aproxima da experiência de rasgada dor que é a guerra.
Qual é a importância do cinema na sua vida?
Vivi até aos 19 anos em Angola, sem vir a Portugal. Nunca tinha visto até aí televisão. Isso dá uma ideia da importância que para o meu imaginário tiveram o cinema e os livros. O cinema vivi-o como uma exaltação física. Vi filmes em salas onde se gritava e atiravam, com o maior dos entusiasmos, coisas ao ecrã. Vi, portanto, filmes em estado puro.
E com um livro, o que é que vai melhor?
Um belo copo de vinho tinto: e não estou a descobrir nada de novo, foi a beber um belo copo de tinto italiano que Marlon Brando entregou ao seu filho Al Pacino o império do mal dos Corleones no “Padrinho”, do Francis Copppola.
Por que é que não escreve um romance?
Já escrevi livros. Um sobre a “Revolução de Outubro”, outro sobre a minha relação apaixonada com os terríveis palavrões que usamos nos insultos ou quando estamos em fúria. É um livro deliciado com a força seminal, se assim posso dizer, da palavra, com esse ponto em que a palavra passa a ser uma arma de guerra. Agora um romance? Talvez um dia, para despedida, escreva um livro que seja híbrido o suficiente para ser considerado um romance. E talvez seja esse livro que decide se, a seguir, vou para o céu ou para o inferno.