O coração de Leopoldo

Na altura andava às voltas com o Solilóquio do Rei Leopoldo, de Mark Twain, e escrevi esta crónica para o meu “Negócios”. Foi em Junho do ano passado. Aqui fica para entretenimento e registo

Seriam de sombrio ouro as torneiras do palácio do rei Leopoldo II dos belgas? Diz-se que eram, sim, de indiscutível ouro, já não sei se as do palácio se as do iate do presidente Mobutu, herdeiro do sombrio Leopoldo em crueldade e horror.

E quem, vendo o porte erecto, o puro e limpo linho da sua longa barba branca, poderia dizer que via o coração de Leopoldo, monarca dos belgas, dono dos milhões de congoleses do Estado Livre ou Independente do Congo? Disse Estado Livre do Congo e estremeço: que desgrenhada e ofensiva ironia foi chamar-se isto ao vasto quintal mesquinho e bárbaro de que Leopoldo foi dono pessoal, como cada um de nós o é de um par de cuecas, umas surradas peúgas.

Arrisco. Talvez o anarquista Gennaro Rubino tinha tido um vislumbre do coração do monarca: viu o que de sevo e impiedoso corria pelas aurículas e ventrículos do rei. Atónito e espaventado, o anarca disparou contra ele três tiros. Nenhum lhe perfurou o coração, nem um pêlo da barba sequer lhe roçou.

Nessa noite de 15 de Novembro de 1902, um teatro inteiro de Bruxelas, patriótico, erguido e teso, cantou loas ao seu rei ileso. Bruxelas era então surda dos dois ouvidos: não escutava as vaias e pateadas com que a Europa já brindava o rei.

Agora olhem para este embarcadiço, regular visitante de Boma, cidade congolesa que, espreguiçando-se, já poria um pé em Angola! Chama-se Edmund Dene Morel, cidadão inglês, um bigode espanador, mas sem barbas que precisem de molho. Ao mundo, Morel relata o chicote, os suplícios, a mortandade que viu.

Volto ao coração de Leopoldo. Sonhou com um império como o holandês ou o português. Tinha um olho no Brasil, e um sobrinho casado com uma filha do imperador D. Pedro II, expansão que a república brasileira gorou. Quis comprar as Filipinas a Espanha. Quem sabe se não terá um dia feito contas a Angola?

Na Conferência de Berlim, Leopoldo fez-se presente e entrou com coração de cordeiro. Do seu colo, como do da nossa rainha Isabel, resvalaram as flores da filantropia. Prometia combater a escravatura árabe que devastava a África Central. Prometia levar ao selvagem coração negro as raízes poderosas desse capim cristão a que chamamos ama o teu próximo como a ti mesmo. Berlim, comovida, deu-lhe um território setenta vezes maior do que a Bélgica, quase duas vezes maior do que Angola. Peço aqui um daqueles silêncios estarrecedores: deram-lhe, a ele, não à Bélgica, como seu reino pessoal, seu quimbo, sua horta, esta imensidão de África.

Mas na Europa ressoa a voz inarredável de Morel. As sociedades comerciais a que Leopoldo entregou o Congo têm um exército privado, a Force Publique, de uma tribo canibal, que serve o terror da alvorada ao pôr do sol. Lançaram um imposto sobre a população, submetida a um regime de trabalhos forçados, que rasa a escravatura. Os congoleses têm de produzir uma cota diária de recolha da borracha, a riqueza que gera a fortuna obscena de Leopoldo. Aos que não cumprem corta-se-lhes uma mão, ou corta-se uma mão aos filhos. As sanzalas são incendiadas, decapitam-se recalcitrantes, empalam-se cabeças: um nevoeiro de terror e nojo flui, espesso, pelo rio Congo. Joseph Conrad romanceou essa névoa em o “Coração das Trevas”, mas foi o incansável combate de Morel, as denúncias dos missionários, que abriram os ouvidos da Europa e, por fim, da Bélgica. Leopoldo, milhões de mortos depois, entregou o Congo à Bélgica e a alguma lei.

Morreu a seguir. No funeral, apuparam o cortejo. Os mesmos que, no dia dos tiros anarquistas, lhe cantaram hossanas no teatro?

E esta é a capa negra do livro que vivamente vos recomendo, em nova tradução.

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