A poesia de Angola no mais belo dos livros

Há livros que trazem estampada na capa, senão a eternidade, pelo menos a certeza de que vão durar uns bons séculos. É essa a bela cara desta Antologia da Poesia Angolana, a que se junta um título belíssimo: Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor

Esta é a maior, a mais completa e a mais livre colectânea da poesia angolana jamais feita. Organizaram-na, em mais de 700 páginas monumentais, a professora Irene Guerra Marques e o poeta Carlos Ferreira. São estes dois angolanos que nos guiam numa viagem pelo tempo, pela geografia e pela inspiração de poetas de vários séculos, da tradição oral das línguas nacionais até ao primeiro texto poético em português, culminando na ardente e luminosa modernidade dos séculos XX e XXI.

Com o lançamento desta Antologia da Poesia Angolana a Guerra e Paz editores inaugura as comemorações do seu 15.º aniversário. Nascemos a 10 de Abril de 2006. Agora, 15 anos depois de termos começado, esta Antologia desperta-nos o entusiasmo do primeiro dia, o gosto da primeira vez. 

Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor chega às livrarias portuguesas a 13 de Abril. Mas nós queremos que os nossos leitores e os amigos da Guerra e Paz mais arrebatados possam ter já garantido o livro. Aqui está ele em pré-venda. E deixem-me dizer cinco razões que justificam a compra: 

É uma edição histórica do riquíssimo património literário angolano.

O livro é lindo, com uma estética irrepreensível: as três faces exteriores do miolo são pintadas à mão.

O arco deste livro cobre a poesia angolana desde os poemas orais nas diversas línguas angolanas até aos poetas contemporâneos: estão aqui Viriato da Cruz, Alda Lara, Agualusa, Mário António, Agostinho Neto, Manuel Rui, António Jacinto, Jofre Rocha, Zetho Gonçalves, Ondjaki.

Na parte final do livro, há informações biográficas e bibliográficas sobre os autores, contextualizando cada um deles: este livro vai ser uma fantástica ferramenta de apoio pedagógico.

É um livro para quem ama a diversidade da língua portuguesa e a forma criativa, original e veemente, como a trata a cultura angolana.

A Guerra e Paz editores faz agora 15 anos. Bastava termos publicado este livro para já ter valido a pena esta aventura.

A ideologia da música

Deixem-me ser vicentino. Todo-o-Mundo ama e Ninguém faz fine bouche à Dança Húngara nº 5 de Johannes Brahms. Atraído pelo calor colectivista, eu também gosto. E, no entanto, seguindo à letra a proposta de Brahms, dançar os três minutos deste tema exige solidão, destreza e liberdade individuais, pés velozes, imaginação alada. 

Há temas para dança colectiva, outros para a ritmada união de um par, e há este apelo a um feroz e móvel individualismo. Por muito mal que esteja a ouvir Brahams é assim que o ouço. 

Ouçam-no também, interpretado, mais suave do que energicamente, pela Orquestra Sinfónica do Bolshoi, dirigida pela bela Tomomi Nishimoto. 

A alma de Bergman

Resgato do passado esta reflexão de um dia de chuvisco outonal

Julgo que o Sétimo Selo foi o primeiro filme de Bergman que vi. Devo tê-lo visto no Estúdio, a sala com vocação de arte e ensaio que nasceu da barriga da perna do cinema Restauração, em Luanda. Tenho a certeza de ter visto esse filme gélido, obscuro, medieval, num dos gloriosos Verões tropicais da minha adolescência. Ter a alma num lado, o corpo noutro, era um dualismo que não batia certo com Luanda e também eu não acertei o passo: adorei o filme sem ser capaz de o viver.

Foi numa mal-sucedida passagem discente por Portugal, pela Faculdade de Direito, num Inverno metropolitano, que acertei o relógio da minha Angst com a Angst do cinema de Bergman. Estreava-se, depois de longa proibição, Persona, com as inadjectiváveis Liv Ullmann e Bibi Andersson. Ao tempo, havia, de geração recente, uma fantástica revista chamada “Cinéfilo”. Trazia, se não era uma entrevista, pelo menos abundantes declarações desse sueco elegante e metafísico. Numa delas, e cito de cor, perguntavam-lhe pela alma.

Era o menos e era tudo o que haveria a perguntar-lhe. Bergman mais do que responder, pôs-se a lembrar e lembrou-se que a primeira vez que tivera uma ideia de alma fora na sua infância e não conseguia imaginar que a alma fosse outra coisa que não uma bolacha. A alma era uma bolacha que se desfazia na boca. Convenhamos que a imagem é estranha na boca luterana de Bergman. Conviria mais à língua que o católico estende à hóstia. Ia a pensar nisto enquanto caminhava, indiferente à abafada morrinha que caía esta manhã. Não era chuva que molhasse um tolo até que, de repente, pensei na alma e tive medo de ficar com a bolacha empapada. 

Água de coco

Há quantos anos não abria um coco? Furei-o para lhe sacar a água, parti-o ao meio, como se vê, e tenho estado aqui numa viagem nostálgica ao palato da minha infância e, sobretudo, da minha adolescência.

Não é, de certeza, uma vivência pascal, mas a brancura imaculada resgata-nos da sombra de todo o pecado.

Páscoa

Quem é que, hoje, não se queixa desta vida agonizante que levamos? Aproveitemos a Páscoa para ressuscitarmos desse túmulo de jeremiadas, tocado a ais e uis.

Vejam o vídeo que aqui junto. A sério, depois de vermos a coragem, o bom humor, a atitude positiva de Eliane Rodrigues, pianista brasileira, quem se atreverá a soltar mais um ai, um lamento?!

Vejam estes oito minutos de surpresas e deixem-se lá dessa coisa de “ah, se eu pudesse atirar-me à vida!” Não se atirem à vida, que não chega. Pé no pedal e mordam-na, que é o que a vida quer, que a comam.

Naquele tempo!

O Sardi’s

Já não sei se naquele tempo o prazer era lento ou longo. Mas sei: naquele tempo era ainda o tempo, lento ou longo, do prazer. Se fosse naquele tempo, nesses longínquos anos, antes de, mordidos a vírus, 2020 e 2021 se arrastarem em culpa e penitência, podíamos, sem máscara, assoarmo-nos ao prazer.  

Havia aeroportos e o avião ressuscitava em nós a euforia do menino, a exaltação do adolescente. Levava-nos à alegria do desconhecido, com uma subreptícia promessa, económica ou business, de inculpada transgressão.

Hoje iria jan­tar a Nova Ior­que. É Primavera e em Manhat­tan quais­quer 10 graus cen­tí­gra­dos sabem a 15 ou 16. Podía­mos ser três ou qua­tro, para a con­versa ir de car­ri­nho. A espla­nada do Aqua­grill, na 210 Spring St, é cálida e irreverente como a morena Melanie Griffith que inflamava o Something Wild de Jonathan Demme. E se nos desse um arre­pio, mudá­va­mos de mesa, para o uterino conforto da sala interior rectangular.

Era do prazer lábil das ostras que queria falar. As ostras saem de gelo e mar e se man­darmos vir champanhe, o pro­mís­cuo cham­panhe não desdenha mesmo nada um petit ménage de lín­gua e ostra. E porque hoje se marisca, o estômago, para fazer caminha, pede viei­ras, gril­led scal­lops, a bivalve carne sólida, super­fí­cie ace­ti­nada, que se entre­ga, insi­nu­an­te, a uma boa aber­tura de lábios e den­tada firme. É por isso que todo o cora­ção que sai do Aqua­grill é um coração apaixonado.

São agora nove da noite e teria almo­çado antes, por volta das treze, no infer­nal Gol­den Uni­corn, enfi­ado num pré­dio assus­ta­dor de uma esquina de Chi­na­town. É o paraíso can­to­nês do dim­sum: dum­plings cor do mais cintilante cobre, cre­pes de veludo, a insa­ci­ada boca (perdoem-me o abuso lexi­cal) a gulodiciar-se na espes­sura de tanto frito – nada é tão frito como o absolu­ta­mente frito da cozi­nha des­tes chi­ne­ses pré-Xi Jiping. As salas do Gol­den Uni­corn são deca­den­tes salas de baile pro­te­gi­das por uns imensos e ron­ro­nan­tes dragões de ouro fiscante. Têm olhos semi­cer­ra­dos e satis­fei­tos, uma pre­gui­çosa língua em fogo, uma barriga lacada a bar­be­cue e fresquís­si­mos fres­cos do mer­cado. Fazem-se novas ami­za­des no Gol­den Unicorn.

Antes do Aqua­grill, pelas sete e meia da tarde de Manhat­tan, havia de pas­sar pela Bro­adway. Volta-se ali, à W 44 St, encos­tada a bai­la­ri­nas, bai­la­ri­nos e actores, como quem se encosta à escola pri­má­ria. Ou como quem volta a abra­çar o Pedro Bandeira Freire, fundador do antro de sonhos que foram, em Lisboa, as quatro salas do cinema Quarteto. O Pedro, ou talvez fossem só os olhos azuis do Pedro, era um tão len­dá­rio fre­quen­ta­dor quão len­dá­rio é este Sardi’s, fun­dado em 1921. No Sardi’s bebia-se o mais vibrante, o mais clássico dry-martini, generoso e geladíssimo gin com meia-gota de vermute bianco seco, gota cortada à faca quando já vai no ar a cair da garrafa para o copo cónico e canónico. Leva-se à boca e logo desliza pela garganta um urso polar que nos transforma o apa­relho diges­tivo na mais ampla e lumi­nosa auto-estrada de desejo e contente melancolia. Bebe-se ao bal­cão do velho bar: era o mais des­pre­ten­si­oso e dinos­sáu­rico bar de Nova Ior­que, com tanto cheiro a casa dos nos­sos avós, que só se levam ao Sardi’s os mais anti­gos e incon­di­ci­o­nais amigos.

E volto ao colo do Pedro Bandeira Freire. Foi pouco antes de ele ir deambular pela eternidade. Disse-me, já que vais a Nova Iorque, faz-me esse favor. E eu fiz: dry-martini na mão, telefonei-lhe do Sardi’s, o velho Joe, bartender, ao lado, a estender-lhe um abraço, tanta saudade e a despedida. Naquele tempo!