
Já não sei se naquele tempo o prazer era lento ou longo. Mas sei: naquele tempo era ainda o tempo, lento ou longo, do prazer. Se fosse naquele tempo, nesses longínquos anos, antes de, mordidos a vírus, 2020 e 2021 se arrastarem em culpa e penitência, podíamos, sem máscara, assoarmo-nos ao prazer.
Havia aeroportos e o avião ressuscitava em nós a euforia do menino, a exaltação do adolescente. Levava-nos à alegria do desconhecido, com uma subreptícia promessa, económica ou business, de inculpada transgressão.
Hoje iria jantar a Nova Iorque. É Primavera e em Manhattan quaisquer 10 graus centígrados sabem a 15 ou 16. Podíamos ser três ou quatro, para a conversa ir de carrinho. A esplanada do Aquagrill, na 210 Spring St, é cálida e irreverente como a morena Melanie Griffith que inflamava o Something Wild de Jonathan Demme. E se nos desse um arrepio, mudávamos de mesa, para o uterino conforto da sala interior rectangular.
Era do prazer lábil das ostras que queria falar. As ostras saem de gelo e mar e se mandarmos vir champanhe, o promíscuo champanhe não desdenha mesmo nada um petit ménage de língua e ostra. E porque hoje se marisca, o estômago, para fazer caminha, pede vieiras, grilled scallops, a bivalve carne sólida, superfície acetinada, que se entrega, insinuante, a uma boa abertura de lábios e dentada firme. É por isso que todo o coração que sai do Aquagrill é um coração apaixonado.
São agora nove da noite e teria almoçado antes, por volta das treze, no infernal Golden Unicorn, enfiado num prédio assustador de uma esquina de Chinatown. É o paraíso cantonês do dimsum: dumplings cor do mais cintilante cobre, crepes de veludo, a insaciada boca (perdoem-me o abuso lexical) a gulodiciar-se na espessura de tanto frito – nada é tão frito como o absolutamente frito da cozinha destes chineses pré-Xi Jiping. As salas do Golden Unicorn são decadentes salas de baile protegidas por uns imensos e ronronantes dragões de ouro fiscante. Têm olhos semicerrados e satisfeitos, uma preguiçosa língua em fogo, uma barriga lacada a barbecue e fresquíssimos frescos do mercado. Fazem-se novas amizades no Golden Unicorn.
Antes do Aquagrill, pelas sete e meia da tarde de Manhattan, havia de passar pela Broadway. Volta-se ali, à W 44 St, encostada a bailarinas, bailarinos e actores, como quem se encosta à escola primária. Ou como quem volta a abraçar o Pedro Bandeira Freire, fundador do antro de sonhos que foram, em Lisboa, as quatro salas do cinema Quarteto. O Pedro, ou talvez fossem só os olhos azuis do Pedro, era um tão lendário frequentador quão lendário é este Sardi’s, fundado em 1921. No Sardi’s bebia-se o mais vibrante, o mais clássico dry-martini, generoso e geladíssimo gin com meia-gota de vermute bianco seco, gota cortada à faca quando já vai no ar a cair da garrafa para o copo cónico e canónico. Leva-se à boca e logo desliza pela garganta um urso polar que nos transforma o aparelho digestivo na mais ampla e luminosa auto-estrada de desejo e contente melancolia. Bebe-se ao balcão do velho bar: era o mais despretensioso e dinossáurico bar de Nova Iorque, com tanto cheiro a casa dos nossos avós, que só se levam ao Sardi’s os mais antigos e incondicionais amigos.
E volto ao colo do Pedro Bandeira Freire. Foi pouco antes de ele ir deambular pela eternidade. Disse-me, já que vais a Nova Iorque, faz-me esse favor. E eu fiz: dry-martini na mão, telefonei-lhe do Sardi’s, o velho Joe, bartender, ao lado, a estender-lhe um abraço, tanta saudade e a despedida. Naquele tempo!
Itália no seu melhor
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