O erecto eu

Henry Miller a mostrar-se a Anais Nin

Se um dia virem alguém na rua ou num jardim a abrir a gabardina e a expor as pendentes miudezas, tenham piedade desse pobre de Cristo, em nome do seu fracasso. Mesmo que seja no jardim da Gulbenkian, só corre o indecoroso e vexatório risco desse exibicionismo de jardim ou parque públicos quem não consegue escrever livros. Ou seja, deambular pelo jardim, desfraldar a gabardina e destapar o murcho escândalo talvez seja um humilhante sucedâneo da literatura. Ou melhor, um sucedâneo do cortejo exibicionista do escritor.

Deixem-me ir buscar a outro jardim, o do esquecimento, um escritor, James Jones. Ninguém se lembra de um livro dele. Ora, quando nos lembramos do sargento Burt Lancaster a beijar a boca de Deborah Kerr, mulher de um capitão, os corpos a rolar, a preto e branco, numa praia do Havai, em “From Here to Eternity”, é desse livro dele que, mesmo que nunca o tenhamos lido, de facto nos lembramos. Tal como o trio de vencidos da vida que eram Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley MacLaine, antes de sair da luz e cores pessimistas do realizador Vincente Minnelli, saiu das páginas que Jones escreveu em “Some Came Running”. E até a guerra que Terence Malick filmou, a céus, copas de árvores, cansaço e silêncio, em “Thin Red Line”, foi James Jones quem lha emprestou com esse seu livro de batalha, medo e morte. Os livros de Jones foram êxitos na América e o mundo leu-os, traduzidos por Hollywood, na escura sala de cinema.

Nunca ninguém viu Jones, falecido com pouco mais de 50 anos, a abrir a gabardina no jardim: nunca precisou. Sem dizer a palavra vaidade, era a vaidade de ser escritor que James Jones tinha na língua quando explicou o que o fazia escrever: “A qualidade que faz com que um homem queira ser lido é essencialmente um desejo de auto-exposição – como aqueles tipos que têm a compulsão de tirar cá para fora aquela sua coisa e mostrá-la no meio da rua.”

A vaidade, a vaidade de se mostrar, gabardina aberta e as vergonhas reluzentes, é o motor de toda a escrita. Oscar Wilde converteu essa inclinação exibicionista do escritor numa arte: despia-se em epigramas. Quando lhe perguntaram quais eram os seus cem livros favoritos, Wilde recusou com honestidade fazer tamanha lista: “Não posso, porque eu só escrevi cinco.”

Viajando, não sei se viria já enfiar-se, fugido, em Paris, depois de ter saído da prisão em Inglaterra, Wilde teve de passar pela alfândega. Foi audaz e pôs-se a nu quando perguntado sobre o que tinha a declarar: “Nada, a não ser o meu génio.”

Um escritor gosta de mostrar o que mostra – o seu erecto eu – e quer que lho afaguem. Umberto Eco jurou que essa vontade de sedução e esse lancinante pedido de cumplicidade são a natureza da profissão e da escrita. Bernard Shaw, que aceitou o Nobel da Literatura por amor à Irlanda, mas recusou o dinheiro vil do prémio, quando não o afagavam, achava legítimo o afago onanista: “Por vezes cito-me a mim mesmo. Acrescenta picante à minha conversa.”

Os escritores, Dostoievski com o seu “Crime e Castigo”, o cego Jorge Luis Borges com as suas “Ficciones”, Joseph Conrad com o seu “Lord Jim”, são afinal tipos pervertidos de larga e destapada gabardina, que se mostram de jardim em jardim. Alguém disse que o destemperado Henry Miller, nos seus trópicos de Câncer e de Capricórnio povoados a falos e generosas vulvas, era um exibicionista da alma.

E as mulheres escritoras, o que exibem? A insuspeita e serena Doris Lessing tira-nos as dúvidas: “Não faz mal nenhum repetirmos para nós mesmos tantas vezes quantas se possa: ‘Sem mim, a indústria literária não existiria.’”

Publicado no Jornal de Negócios

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