
Quase a terminar o ano de 2020, publiquei este livro, Azul de Lisboa, Azur de Lisabona. Mas os verdadeiros editores foram os meus amigo romenos, Iona Bivolaru, Embaixadora da Roménia em Lisboa, e o Daniel e o Gelu, meus amigos do Instituto Cultural. Eles tiveram a ideia de juntar escritores, artistas, diplomatas romenos com vivência de Lisboa, pedindo-lhes um testemunho: que Lisboa viram os olhos deles? Estava tudo a ir muito bem, quando me pregaram um susto: pediram que eu escrevesse também. Desse susto nasceu esta confissão.
Um doce anseio de pecado
Manuel S. Fonseca, editor
Na formatura, nas saídas nocturnas, na carreira de tiro, nas marchas finais, fazia eu a minha recruta de aspirante a oficial, na Escola de Aplicação Militar de Angola, e havia um peso romeno a atafulhar o bolso da farda feijão-verde regular ou a do camuflado. O peso romeno, uns cem gramas, era o livro de um escritor, Mircea Eliade. Entre uivos e explosões corria 1974 e, naqueles tempos de acelerada marxização de Angola e de Portugal, a contrabalançar a minha inclinação maoísta, lia ou devorava-lhe as teses de O Sagrado e o Profano, a Essência das Religiões. A G3 numa mão, Mircea na outra, diria, se quisesse vender de mim a imagem do guerreiro que não sou nem nunca fui, mesmo se algum dia cheguei a pensar que o poder estava na ponta de um fuzil.
Mas se em vez de maoista eu fosse bruxo, teria visto, nesse livro delgado, que ia jurar ser em papel bíblia, um signo. Nesse pé coxinho entre sagrado e profano a que Eliade me obrigava, teria antecipado que a minha vida descambaria nesta via sacra a que se dá o nome de edição. Eterno retorno ou não, seria eu próprio, uns crísticos trinta e três anos depois, editor de Mircea Eliade, publicando-lhe o Diário Português. E penso agora que se o metesse no bolso do velho camuflado iria já em 400 gramas de estranho, exógeno, peso romeno.
Foi António Lobo Antunes quem fez desaguar este adventício peso no estuário de amizade com que hoje alguns escritores, e este Instituto de Cultura Romena, de Lisboa, dos amigos Daniel e Gelu, me agraciam. Numa bélica e estratégica barragem de telefonemas – belíssima, por isso – António e o seu amigo Dinu Flamand agarraram em mim ao colo (não é difícil que não sou pesado), e sentaram-me na contemporaneidade romena. Ao Dinu, publiquei as suas tão evocativas Sombras e Falésias, de que é antecâmara um prefácio de António Lobo Antunes. E logo, por sugestão do Dinu, a Antologia de Poesia Romena Contemporânea, viagem pelos últimos 50 anos com os 27 mais representativos poetas da nação romena. Tudo com assombrosas traduções de Corneliu Popa.
Chego agora a este Azul de Lisboa, de que serei imerecidamente editor, livro em que me sinto deliciosamente perdido. Onde estava esta Lisboa que olhos romenos me revelam? Para meu espanto e vergonha, descubro que até com os pés estes romenos vêem Lisboa, evitando pisá-la, levitando, para descobrirem nas calçadas negras e brancas os desenhos de pássaros e insectos, de naus e ondas do mar.
Os olhos dos romenos são iguais aos olhos do Cervantes que escreveu os Trabajos de Persiles y Sigismunda, no livro terceiro cantando a sublime entrada em Lisboa pelo estuário do Tejo, “terra que ao Céu presta santo e generosíssimo tributo”.
Eu sei bem, tardio habitante desta cidade, a que cheguei já com idade de homem, que em certos dias límpidos de Outono, a luz de Lisboa é a mais bonita luz do mundo. Essa luz deixa-se dormir durante a manhã e, como certas mulheres que prezam o brilho juvenil da sua pele, acorda, esplêndida e ociosa, pelo meio-dia. É uma luz fina, discretamente resplandecente, luz em papel bíblia, deslumbrante e intacta, que cria a ilusão da harmonia do mundo.
Neste Azul de Lisboa, olhos e vozes romenas desdobram-se em vagas de elogios às colinas, rio ou Bairro Alto, fado ou a encalhada Torre de Belém. Bebi, talvez no seio materno, o embaraço perante o elogio – é da minha Lisboa que falam! Torço-me e logo deslizo para a autodepreciação. Mas por mais que deteste os elogios, sei reconhecer o amor. E a Lisboa, a este Tejo que é um mar a fingir de rio, é amor o que os olhos e as vozes dos romenos de Azul de Lisboa confessam, mostram ou cantam. O mesmo amor que cintila nos olhos azuis de António Lobo Antunes quando me conta e reconta o seu fascínio pela Roménia, pelos seus poetas ou, com doce anseio de pecado, pela beleza das suas mulheres. É esse doce anseio de pecado que também este livro, Azul de Lisboa, celebra.
Bolas! E quanto bem nos fizeram esses seus amigos insistentes entre os quais se conta o meu escritor de eleição. O seu escrito está, como diriam nossos amigos brasileiros, bom para lá da conta. Ou “bom dijimáiss”.
Resta desejar que as vendas sejam conformes.
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Bea, são umas linhas esforçadas. Mas obrigado pela gentileza.
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