
Nancy Cunard despia-se de noiva para toda a literatura. Sem os seus lençóis livres e generosos talvez nem tivesse havido modernismo. E digo já nomes, antes mesmo que me torturem: Eliot ou Ezra Pond, mas também Hemingway e Orwell, sem esquecer Louis Aragon, Tristan Tzara, Joyce, Man Ray, William Carlos Williams ou Langston Hughes.
Se foram todos seus amantes? Ia dar a cândida resposta, não fora ulular-me aos ouvidos a óbvia pergunta: quem era Nancy Cunard?
Era a neta e herdeira do dono da Cunard, a mais majestosa e imperial companhia de navegação, flâmula que erguida e hasteada numa centena de transatlânticos esvoaçou sobre todos águas do mundo, mares ou oceanos. O pai inglês, deitado em sumaúmas de libras, só queria jogar pólo e caçar raposas. A mãe, americana, rendida ao esplendor das artes, dava festas arrebatadoras e classistas em Londres, tendo por amante o escritor George Moore, que foi, como até as pedras da calçada juram, pai espiritual de Nancy.
Nancy casou cedo. Casou-se ao pequeno almoço e ao lanche já estava divorciada. Depois apaixonou-se por Peter Broughton-Adderley. Era capitão do 1.º batalhão dos Scots Guards e, a um mês do armistício, a comandar um assalto às trincheiras inimigas, foi abatido por uma inclemente bala boche. Diz-se que a ironia trágica dessa bala traçou o destino inquieto e insaciável de Nancy.
Mas vejamos e concordemos: esses factos só são factos por causa dos factos que se seguem. Nancy despreza a colossal herança e esfregará os futuros actos no rosto oligárquico do distraído papá e, sobretudo, da atenta mamã.
E vejamos outra vez: Nancy Cunard é ela mesma poeta e escritora, com uma relação leal e verdadeira com a literatura e as artes. Em Veneza, onde está com o amante de já dois anos, o poeta Louis Aragon, conhece um pianista de jazz, Henry Crowder. Nas costas ou à frente de Aragon, que a liberdade de Nancy era holística, deita-se com Crowder, menino paupérrimo nascido na Georgia esclavagista. Aragon quase se suicida em verso num dos eróticos canais de Veneza.
Ora, mais do que Aragon, é a horrorizada mãe que Nancy tem de enfrentar. “Mas a minha filha conhece um negro?” pergunta aos jornais ingleses a mãe ultrajada. Nancy há de acusá-la de ter assistido a um linchamento na América e escreve um panfleto, “O Homem Negro e a Branca Dama dos Barcos”, em que ironiza sobre preconceitos e despedaça tabus rácicos.
Nos sete anos que se seguem, Nancy e Henry Crowder vivem juntos. Na Normandia, ela funda a Hours Press. Ali publica Eliot, Joyce, Beckett, Pond, Hemingway. A Crowder mima-o com um livro, “Henry, Music”, mistura das composições dele e poemas que poetas, como Beckett, escreveram para ele musicar. E com a ajuda de Crowder, arma uma homérica “Negro: an Anthology” com mais de mil páginas, reunindo poesia, contos, arte africana. Vai com Crowder conhecer Harlem e envolve-se no apoio às mães dos Scottsboro Boys, os jovens negros acusados falsamente da violação de duas jovens brancas.
Nancy Cunard, difamada ontem pela reacção, seria (será!) difamada hoje pelos progressistas: ela incarna a abjuração moderna, a apropriação cultural. Mesmo Crowder, nas suas memórias, recrimina-a. Livre como era, dormindo com ele, continuou a dormir com quem queria, talvez mesmo Greta Garbo. Tal como o ateu Aragon, ferido na sua virilidade, Crowder, de rígida moral cristã negra, sofreu com ressentimento essa liberdade. A mulher de lençóis livres e generosos está sempre à frente do seu tempo – de todos os tempos.
Têm sempre um fim precoce e trágico.
Assim foi…
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Bem observado. Vou procurar uma figura feminina de ruptura que tenha vivido cem anos. Aliás, já a tenho. Conto daqui a umas semanas.
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Gosto um imenso das suas histórias verdadeiras que incluem gente muito única e que escapa das malhas da rede. Nas palavras do Manuel leio certo título de novela radiofónica que nunca esqueci (com outros nomes, claro) e era anunciada como, “A vida aventurosa e ardente de Ricardo Wagner”.
A cada um a sua mortal imortalidade.
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Lá me está a dar ideias para um podcast…
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