A picareta no cérebro

O assassino de Trotsky. Aqui ainda não se sabia quem verdadeiramente era

A utopia tem um imerecidíssimo bom nome. O que, debaixo desse chapéu se fez de hediondo, o que sob a sua sombra se gerou de miséria, atraso, obscurantismo e morte, devia fazer-nos pensar cinco vezes. Mas é o que é: às vezes mais vale cair em graça do que ser engraçado. Veja-se a história de Trotsky: foi quem foi! Passa por ser um pensador.

Foi um heterónimo que espetou a picareta de alpinista na cabeça de Trotsky. Hoje sabemos, mas não se soube durante décadas, que a mão que desferiu o golpe hediondo foi a do catalão Ramon Mercader del Rio. Ao condená-lo, a polícia e os tribunais mexicanos condenaram, primeiro o canadiano Frank Jacson e, a seguir, o belga Jacques Monard.

Que Jacson e Monard fossem o assassino contratado Ramon Mercader, não o soube a polícia, nem o sabia Sylvia Ageloff, a mulher que o amava mais perdidamente do que Ofélia amou Fernando Pessoa a quem, apaixonado pela heteronímia, não se lhe conhece, todavia, inclinação por picadores de gelo ou fidelidades estalinistas.

Fora a mãe, Maria Caridad del Rio, combatente roja na Guerra Civil e amante de um agente do NKVD, a PIDE à séria de Estaline, que recrutara o já militante filho para a gloriosa missão de varrer Trotsky para debaixo do tapete da eternidade. Estaline, a gozar a amenidade que foi o seu pacto com Hitler, pôs em acção três planos distintos para o liquidar.

A 24 de Maio, David Siqueiros, pintor e farol de um mexicanizado realismo estalinista, atacou à metralhadora, com outros sequazes, a casa de Trotsky. Foram encontrados mais de 200 projecteis, mas os tiros de Siqueiros apenas atingiram o pé do neto de 14 anos de Trotsky. Há, claro, sempre um americano que se lixa: Robert Hare, um assistente e guarda costas, foi raptado e assassinado pelo bando de Siqueiros.

A inocência e carência amorosa de outra americana, a nova-iorquina Sylvia Ageloff, abriu as portas ao segundo plano. Era irmã de uma secretária de Trotsky e Mercader lançou-lhe o isco nesse mar de convulsa sensualidade que era Paris em 1939. A terna boca de Sylvia engoliu isco e anzol. Apaixonou-se pelo belga Jacques Monard, heterónimo que Mercader adoptou, falando o francês irrepreensível que a infância parisiense lhe autorizava.

Partilharam tudo, o melancólico sabor da pele, lençóis e uma comum e insuspeita devoção por Trotsky, tão convicta como a dos pastorinhos pela Senhora da azinheira. Sylvia regressou a Nova Iorque. Monard, com a mesma alacre paixão que qualquer ministro tem pela TAP, foi ter com ela. Já tinha uma segunda identidade, o falso passaporte que a PIDE, ai perdão, a NKVD, lhe arranjara. Era agora, um empresário canadiano, Frank Jacson, e era-o, explicou, para mergulhar na clandestinidade que lhe permitia fugir à tropa na Bélgica reaccionária.

Precisa agora, diz ele, de ir à Cidade do México. Como não suporta a ausência de Sylvia, pede que ela o acompanhe. Perfeito: Sylvia quer matar saudades da irmã e ajoelhar-se aos pés de São Trotsky. Recebidos como Romeu e Julieta, têm acesso à casa, ao convívio com os guarda costas americanos. À décima visita, Frank traz um texto revolucionário que quer propor a Trotsky. Estão sós, o velho e míope revolucionário a ler a prosa. Frank tira da gabardina e enfia a picareta no parietal direito de Trotsky, sete centímetros dentro do cérebro. O inumano berro de Trotsky fez acorrer os guarda costas, “Não o matem, tem de contar a história”, ainda disse Trotsky, que morreu um dia depois. Morte afectiva teve a inocente Sylvia, acusada de cumplicidade, e traída pelo que acreditava ser o amor da sua vida.

Se o pintor e pistoleiro David Siqueiros recebeu da URSS o prémio Lenine para a Paz, vinte anos depois, cumprida a pena, Mercader receberia outra nobre condecoração, a de Herói da União Soviética. Diz-se que morreu, dizendo: “Ouço-o sempre. Ouço o grito dele. E sei que ele está à minha espera do lado de lá.”

a arma que eliminou Trotsky

1 thought on “A picareta no cérebro”

  1. Caro Manuel, long time no reading your words!
    Acabou de me chegar através do instagram este mimo. Será que a coisa, pela natureza da coisa, se irá repetir?
    Um forte abraço neste excelente ano de 2021, sim que essa tragédia que veio destapar os pés a Portugal, nunca impediu a leitura. A sugestão do ano será William Gaddis, Agapé Agape.

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