
O povo, essa figura mitológica de tantas cabeças, lançou-se em busca de relíquias de Maria Madalena Ana Dreux d’Aubray, marquesa de Brinvilliers.
A marquesa de Brivilliers era uma santa. Apenas matara o próprio pai e os irmãos, e já se preparava para matar o marido: pela morte santa que o envenenamento camufla num cálice ou no mais cristalino dos copos. E olhemo-nos ao espelho na biografia de Maria Madalena. Era filha de um magistrado parisiense. Seria porventura pai ausente, que as exigências burocráticas da França daquele tempo eram tantas como as do regalado monstro que é a máquina voraz do estado português. E não havia ainda, realce-se, a doméstica modorra do teletrabalho. O resultado é que, aos sete anos, nas solitárias sombras de um canto de sua casa, Maria Madalena foi violada por um dos criados de dentro. Aos dez anos, era abusada pelos dois irmãos machos. Ou ofereceu-se-lhes, sugerem outras fontes.
E deixem-me já recorrer a uma adversativa: não obstante, desse pântano nasceu uma flor. Maria Madalena era pequena, mas tão mignonne como a mignonne do verso de Ronsard, que o poeta convida a ver uma rosa. Maria Madalena foi ver rosas com o marquês de Brinvilliers. E o marquês levou-a ao altar e pelo braço levava uma santa de um translúcido olhar azul e uma inocência desarmada e desarmante de Madre Teresa.
Dos braços do marquês aos braços e abraços do oficial de cavalaria Godin de Saint-Croix foi um passo de Via Sacra. Apresentara-lho o marido. O garbo militar e o interesse dele pela alquimia, somado ao gosto dos dois por um luxo sumptuário, tornaram-nos amantes, lado para o qual o marquês de Brinvilliers melhor dormia, entretido também ele a dormir com todos os rabos de saia dessa Paris que já beijava na boca a infidelidade, longe de saber que o século XXI descobriria, com a acusação a Ricardo Salgado, outra ingrata, espúria e mesquinha forma de infidelidade, a financeira.
A abundante, deletéria e pública forma com que a marquesa de Brinvilliers se entregava ao adultério, se deixava imperturbável o manso e concupiscente marquês, incomodava o senhor seu pai, magistrado de rigorosa moral. Mandou, por isso, sem lhe autorizar defesa e sem julgamento, encerrar o cavaleiro Godin na Bastilha, esse Aljube pré-Rita Rato. Mal sabia que juntava fome e vontade de comer. Na choldra que era a Bastilha, Godin conheceu um italiano que apurou os seus dotes alquímicos e lhe abriu a estrada de Damasco para os mais edénicos venenos.
Instruída pelo amante na nova arte, a marquesa de Brinviliers começou por exercer a sua vingativa ciência no pai. Ao longo de meses, envenenou-o com subtileza e discrição. Depois, vingando a afronta incestuosa e apontando à totalidade da herança, fez cair os irmãos, a arsénico e outros insidiosos malabarismos químicos. Diz-se que, antes, nas suas acções solidárias aos pobres e desvalidos, deles terá feito o seu teatro de ensaio.
Preparava-se para matar o marido. Mas o amante, ousado na cama, mas temente da prisão, guardara provas acusatórias contra ela, descobertas quando morre por acidente.
Maria Madalena é presa. Ao seu olhar regressa o azul translúcido de outrora, ao seu corpo, a inocência mignonne. Confessa-se e todo o mundo lhe perdoa. Menos o burocrático juiz que lhe manda cortar a cabeça. Comove-se o carrasco e a multidão que a chora e quer relíquias: a fímbria do seu vestido, um caracol dos seus cabelos, uma límpida gota do seu sangue. Não se comove o implacável Estado que logo ali a queima. De Maria Madalena, marquesa, só sobram cinzas que o vento levou.
Publicado no Jornal de Negócios
Ele há mulheres para tudo.
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E homens também 🙂
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