
Adélia da Fonseca-Riès vinha sempre, como leitora, e com comentários, animar o velho Escrever é Triste, o blog colectivo que tinha como lema “chatices não”. O gosto lúdico da escrita animava o Escrever é Triste e isso bastava a Adélia Riès. Ou melhor, não bastava: queria que os Tristes publicassem livros e vinha à Guerra e Paz encomendar obras. Devo-lhe ter publicado um poeta americano, Howard Altmann, Quando a Fina Neve Cai, em tradução da Eugénia de Vasconcellos. E que bonita foi a sessão de lançamento, no Palácio de Belmonte, ali ao Castelo, sob os auspícios da Maria e Frédéric Coustols.
A alegria e a generosidade da Adélia foram agora esconder-se entre as nuvens. Fecho os olhos e consigo vê-la. Dou-lhe um último beijo e peço-lhe que volte a ler este texto de escritores e cineastas, duas constantes desse Escrever é Triste que a deliciava.
Jejum e Mar da palha
O cinema só não é uma arte maior como a literatura porque não há cineastas virgens. O cineasta virgem seria uma contradição nos termos. A câmara de filmar é um falo hiperbólico: devassa, despe, acaricia. Bi ou promíscua, a câmara tanto faz estremecer Keira Knightely e Scarlett Johansson como Michael Fassbender.
O cinema nasce convivial e flui numa emulsão, enquanto a literatura, solitária, se derrama e seca sobre o papel. Há uma legião de escritores virgens. Uns morreram virgens por deformidade física, como Giacomo Leopardi. Emily Dickinson por rebeldia. Por orgulho ou preconceito, Jane Austen criou páginas e páginas de virgindade. Sabia do que falava, morreu intocada.
George Bernard Shaw era vegetariano. Dente de Shaw não mordia carne. E mesmo se casou foi só para conferir mistério ao mar de palha que era o seu jejum. Foi uma inglesa que disse: “Se Shaw tivesse comido um bom bife, o que teria sido das mulheres de Londres.”
Lembro que há um português virgem. O poeta que mais vivo está no imaginário colectivo da pátria que é a nossa língua, esse desdobrável Fernando Pessoa, se pinava era só com a cabeça. Disse-o Mário Cesariny e tê-lo-á lamentado Ofélia.
Pelo contrário, todo o cineasta é uma câmara: confunde-se e funde-se com a sua actriz. Orson Welles e Rita Hayworth, Godard e Anna Karina, Bergman com Liv Ullman e etc, Milla Jovovich com Luc Besson e Paul Anderson, Woody Allen com Mia Farrow e Diane Keaton, Isabella Rosssellini com Scorsese e David Lynch.
Volto ao papel. E.M. Forster, o autor de “Howard’s End” e de “Passagem para a Índia”, que o cinema também assaltou, foi virgem até aos 37 e até aos 37 escreveu a sua obra. Logo que descobriu o humpy rump nunca mais escreveu nada de jeito.
E desminto já esta deriva ascética. James Joyce tinha uns meninos 14 anos quando uma jovem mulher da noite o apanhou na fria madrugada de Dublin e, por módica quantia, o guiou nuns consoladores três minutos de vaivém entre a imanência e a transcendência. Deveremos a esse anónimo ventre a desconcertante polissemia de “Ulisses”?
Tolstoi teve a primeira suada batalha aos 16 anos. Quando acabou, meio vestido, a outra metade de si ainda nua, sentou-se ao fundo da cama da mulher a quem pagara e chorou copiosamente. Foram essas copiosas lágrimas que alimentaram o seu “Guerra e Paz”?
podem ter essas diferenças que diz, mas há em ambos sugestão que baste para nos tirar do sério de todos os dias. Que triste a vida sem ler ou ver cinema. Olha se fossemos de uns séculos atrasados…
LikeLike
Béa, precisamos de mais escritores virges e de realizadores devassos. É isso mesmo.
LikeLike