
O poeta Max Jacob estava de cu para o ar quando ganhou a imortalidade. Inclinado, para apanhar um par de pantufas debaixo da cama, ao soerguer-se vê Jesus Cristo na parede do seu sórdido quarto. Com uma túnica de seda amarela, debruada a azuis, Jesus escorria pela parede como uma aguarela. Movia-se, mas não disse uma palavra ao poeta e pintor. Como apareceu, assim se desvaneceu. Foi a 16 de Setembro de 1909, já lá vai mais de um século.
Os 33 crísticos anos do judeu Max Jacob desataram a correr pelas ruas de Montmartre e derraparam à porta da igreja. Agarrou-se ao pároco e contou-lhe a visão, ou cantou-lha, que Max era também músico. O padre, incréu, gentio, olha-o com um cepticismo de ministro das finanças, e nem quando a calvície de Max Jacob se lhe roja aos pés se deixa banhar pela alegria da revelação e da fé. Nega.
Vejamos, o padre conhecia Max Jacob. Vira-o na companhia boémia de Picassos, Apollinaires e Modiglianis, quem sabe se não mesmo, algum dia, a desencaminharem o nosso Amadeo de Souza Cardoso. Um bando frequentador de bistrots e guinguettes, copos, petiscos e bailes, publicanos e marias madalenas. Más companhias? Talvez, mas algum dia Jesus, o Cristo, fez fine bouche a más companhias?
E preciso de arrastar o flash-back ainda lá mais atrás. Nascido na Bretanha, numa família judia laica, o miúdo Max morria de inveja ao ver os meninos católicos em missas e comunhões: tanta fé, tanta santa culpa, tanto arrependimento e absolvição levavam ao êxtase a sua saborosa inclinação homossexual e a culpa que lhe vinha amarrada.
Em Paris, a sua vida celerada juntou a convulsão da noite a um lirismo melancólico e de intensa espiritualidade. Descobre Picasso e dá-lhe guarida no seu quarto, em regime de cama quente: Picasso pinta durante a noite e vem dormir quando Max se levanta para ir trabalhar. Agora, sozinho, neste seu novo quarto, roupas, sapatos, livros, godés, tintas e pincéis espalham o caos sobre mesa, cadeiras e cama; nas paredes estão pintados os signos do zodíaco e irrompem frases num apocalipse pré-graffitiano.
Tenho de ser sincero, se Cristo é o tipo que eu penso, não vejo em que outro quarto pudesse ter aparecido. No fecho parisiense da primeira década do século XX, Cristo, a querer alguma coisa, quereria ser boémio e artista de vanguarda. E eis que Cristo, confundido com a negação e a humilhação que a visão de Max Jacob desencadeou em crentes e ateus, padres, pintores e poetas, insiste.
A 16 de Dezembro de 1914, Max Jacob está sentado numa sala de cinema. As imagens correm na tela e eis que, do nada, Jesus Cristo, tão mudo como o filme, se senta ao seu lado. Veste a mesma túnica branca e rude que usará no Vangelo de Pasolini. Olha, fixo, para Max e logo lhe diz adeus que mais século, menos século vai ter de aturar um mundo de Trumps e Xi Jipings.
Desta vez, acreditam em Max. Meses depois é baptizado. Picasso é o padrinho. E em 1921, Max Jacob entra num mosteiro beneditino, consolando-se na penitência, meditação e beleza.
Aí o descobrirá um SS a quem mostra a abadia de Notre-Dame-de-Fleury. “Com esse nariz, você é judeu”, acusa-o. Os monges jurarão que ele é católico e bretão, mas a barbárie, obcecada por narizes, triunfa. Prendem-no e vão deportá-lo para Auschwitz. Uma bronco-pneumonia atira-o para a enfermaria de Drancy. Na cama, alucinado, Max Jacob sussurra, “judeu sujo, judeu sujo”, e morre cinco dias antes de partir o comboio para Auschwitz. Morre um judeu boémio, poeta, romancista: a cruz e a estrela amarela por mortalha.
Publicado no Jornal de Negócios
Simpatizo um imenso com Max Jacob e com o Cristo que lhe apareceu. Não sei se o Deus é o mesmo que conheço, mas quero crer que sim.
LikeLike
Também me parece que o Deus é o mesmo. 🙂
LikeLike