O Nu e o Óbolo

 

Andava eu com o meu amigo Norton por um blog chamado Geração de 60 e não é que, em Paris, nas Belas Artes, os modelos fizeram uma greve vindo posar nus para a porta da academia. Tinham boas e nuas razões para isso. Apoiei como pude essa greve. Eis o que a minha indignação de 2008 me mandou escrever.

nus

Seria capaz de se despir face a uma bateria de homens e mulheres com uma folha de desenho à frente e um lápis na mão? Ao meu «não», rotundo e robusto, assistem razões de peso. Poupo-me à humilhação de as enumerar.

Não me poupo a uma confissão: o nu excitou mais a minha paixão pela pintura do que dezenas de sábias histórias de arte.

Como em todas as grandes histórias, também na história do nu em pintura, toda a gente conhece os generais – de Botticelli a Picasso, de Courbet a Egon Schiele – mas poucos reconhecem o soldado desconhecido que garantiu a vitória nas trincheiras. E sem eles – sem elas – nem a guerra teria sido ganha, nem sequer teria havido guerra.

Agora, arriscamo-nos a perder todas as batalhas. Em Paris, por decisão de Monsieur le Maire, os modelos estão mais nus e arriscam-se a ficar muito mais magros. Explico-me. Sem intervenção da nossa dedicada e zelosa ASAE, acaba de ser proibida uma prática ancestral. Nas Belas Artes, era norma os modelos despirem-se, posarem e, no fim, dobrarem uma folha de desenho formando um «cornet», para recolha das mais ou menos generosas gorjetas com que artistas e alunos entendiam recompensar a mais árdua das tarefas: «não falar, não se mexer, nada produzir» que é como os próprios modelos definem a voluntária escravidão a que se dedicam.

Pagos a 10 euros a hora, estes e estas amantes da arte tinham no óbolo dos artistas um complemento espiritual que o respectivo físico também não desdenhava. Chamo a vossa atenção para um pequeno pormenor : é preciso compreender o nu. O nu, nas Belas Artes, custa e custa muito. É feito de sofrimento e imobilidade. Os modelos despem-se e vestem-se atrás de um biombo. Se querem saber, entre uma pose e outra pode passar uma hora: nesse intermezzo não há aquecimentos, nem salas de espera. Não será preciso se-se de ferro, mas é preciso ter uma anatomia temperada. E as gorjetas ajudavam: valiam, dizem os modelos sem fronteiras, um quarto do salário. Autorizavam alguma piscina e, quando calhava, o ginásio. Por isso é que a gorjeta, embora proibida, continuava a ser tolerada nas Beaux-Arts. Agora – dura lex – nem proibida, nem tolerada.

Os modelos vieram para a rua e manifestaram-se. Em carne e osso – e com justiça. Ao contrário do que costuma acontecer, as ruas ficaram melhores. Mais belas e menos perigosas. Foi só um gesto. A mim pareceu-me artístico : vejam as imagens. A cada um de nós, homens e mulheres, vai apetecer-nos abraçar a causa e pôr o objecto da nossa escolha no merecido pedestal. Temos por onde escolher e para todos os gostos. Com uma vantagem : não falam, não se mexem, nada produzem!

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