Já sabem que tenho uma missão: recuperar para esta Página Negra os meus textos antigos, os que ficaram perdidos em jornais e em blogs já extintos. Quando, a 2 de Abril de 2015, logo no dia seguinte ao dia das mentiras, parecendo ainda que era mentira, morreu Manoel de Oliveira, o Expresso pediu-me um artigo e, a quente, escrevi assim:
Se estivesse vivo, o que escreveria hoje João Bénard da Costa sobre a morte de Manoel de Oliveira? Escreveria sobre a morte, sobre o desejo de morte, que Oliveira cultivou na sua obra? “Não se nasce com outra certeza que a morte”, diz Vanessa, personagem de “O Princípio da Incerteza”
Ou escreveria um texto pasmoso e barroco sobre o coração da mulher amada que José Augusto tem na mão, na “Francisca”, um dos filmes que o João tanto amava e que eu não hesitaria em dizer que, com “O Passado e o Presente”, era o melhor filme de Oliveira?
Se eu pudesse pedir ao João Bénard, pedir-lhe-ia que escrevesse sobre o mais perturbante dos temas que atravessa, depois dos anos 60, a obra do decano de todos os cineastas. Pedia-lhe que escrevesse sobre os amores frustrados nos filmes de Oliveira, sobre essa singular e ínvia relação que os homens têm com as mulheres. Et pour cause, as mulheres com os homens. Relação insuportável, extremada, como a que, em “O Passado e o Presente”, a protagonista tem com os seus maridos: só os ama depois de terem morrido, de tal forma que cada novo marido é sempre assombrado pela memória e pelo cadáver do anterior.
Não sei, nem seria capaz, de escrever sobre nada disso. Sei apenas que neste fim de semana escrevi sobre um episódio que vivi com Manoel de Oliveira e que mandei esse texto para o “Expresso” para ser publicado na “Revista” que sai amanhã. Quando hoje soube da morte do Manoel arrepiei-me. Digo nesse texto que o Manoel é imortal e mal o digo vejo-me desmentido.
Ou talvez não, porque havia um lado fáustico em Manoel de Oliveira. Há um Oliveira que concebe e cria os filmes e havia um Oliveira que vivia o dia a dia com uma energia quase juvenil. Há uma abissal diferença entre a vida e a obra de Manoel de Oliveira. Haverá?
Donde vêm as personagens femininas dos filmes de Oliveira? Amava-as? Amou as actrizes que as incarnaram? Dir-se-ia que não amou nenhuma como Sternberg amou Marlene, como Bergman amou as suas Andersson, a sua Ullmann, ou Rossellini a sua Ingrid. Mas teria Oliveira, como eles, vontade de beijar e tocar as suas actrizes? Beijou-as? Não há história do cinema português: há uma vaga narrativa e muitas lendas. E que bem que fica a lenda a Oliveira, se a lenda aceitar que, nas filmagens, havia um Oliveira vivo e carnal.
Ainda agora, um jovem assistente me contou que, numa repérage, Oliveira caminhava de costas, a olhar pelo viewfinder e ia tão distraído ou concentrado que bateu com as costas contra uma parede. Virou-se, viu a parede, voltou a olhar para os assistentes e disse: “Esta parede, abaixo!”
Nos seus filmes com uma tão hierática relação com o teatro, nesses filmes em que, mais recentemente, Oliveira parecia entregar-se a temas e cenas em que caminhava para a sua própria morte, havia no plateau um Oliveira vivo, enérgico, capaz de se debruçar para fora de uma janela, pondo toda a equipa com um “ai, jesus” na boca, um Oliveira que repetia vigorosamente a cena que um actor fizesse mole.
É esse o meu Oliveira, o que vi na mais divertida noite com cineastas geniais, a contar anedotas alentejanas para responder às barzellette sobre carabieniere que Antonioni contou em Lisboa, na Embaixada de Itália. O mesmo Oliveira que me obrigou a andar, em Cannes, Croisette acima, Croisette abaixo, numa discussão filosófica interminável e civilizadamente gritada, quando eu, cheio de mil objecções, escrevi sobre o seu “Non ou a Vã Glória de Mandar”.
Esse é o Manoel que cheguei a pensar imortal. Fica a obra, mais de 30 longas-metragens, inquietas, elaboradas, de corpos que ele canibalizou de uma maneira singular, uma obra que da Teresinha de “Aniki-Bobó” às mulheres que nos filmes dele foram Leonor Silveira e Leonor Baldaque, revela ou denuncia um mal, uma doença portuguesa: o homem português olha para a mulher e esse olhar é um olhar impotente.
Do Manoel de Oliveira bastam-me três: Aniki-Bóbó, Francisca e Vale Abraão. O Francisca vou rever brevemente na Cinemateca.
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Albertino, já são bons, mas não se esqueça do Acto da Primaver e dde O Passado e o Presente. Tão bonitos.
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Não gosto de todos os filmes de Manoel de Oliveira, mas não sou uma cinéfila encartada.
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Não faz mal estar desencartada, o senhor Oliveira gostaria sempre de si, gostasse a Bea o que dele quisesse gostar.
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