Estão nuas e de costas. Uma saiu do banho. Da outra, o corpo inerte nada deixa adivinhar.

Degas, que começou a ver mal em 1870, pintou esta mulher que sai do banho (ou se banha ainda) em 1895. Como os outros nus – sempre no banho ou a sair dele; quando se seca o corpo em pé ou ligeiramente dobrado para que as mãos levem a toalha ao que de molhado reste entre joelhos e a oculta virilha; ou penteando-se cabelos – Degas pintou este quadro quase à beira da cegueira. Não forço muito a nota se disser que já não são mulheres o que Degas pinta, mas uma certa memória delas. (E se, um dia, Deus ou os seus anjos me levarem os olhos, que me deixem memória e consolação.)
Digam o que queiram e saibam dizer de luz e composição, o que me interessa neste “Le Bain” é a instantânea surpresa. É Degas que nos convida, mas sei que não devia ter entrado, devia ter resistido à porta aberta da toilette. A improvável posição da perna, o osso da anca que sobressai, a revolta cabeleira ruiva, a criada que a seca, as pernas que se abrem impúdicas, nada autoriza presença alheia, tudo é só descuidada intimidade. Mas será que ela, a mulher no banho, percebeu a invasão? A tensa contracção do corpo significa que se quer levantar? Ou roda só para que a criada melhor a seque?! Mais optimistas, podemos pensar que Degas pintou uma mulher que se prepara para o amor, para se oferecer. As pernas que se abrem antecipariam outro trémulo corpo que as virá preencher.
Acusaram-no de pintar as mulheres feias. Respondeu, e só podemos concordar, que não, não as pintava feias, pintava-as como “gatos que se lambem a si mesmos”. Gatas de Degas, de que sentimos o corpo redondo, carnal mas pontuado de intensos e psicológicos ossos, mesmo se apenas as espreitamos pelo buraco da fechadura.

Trinta anos depois, um americano, apaixonado por Paris e pelos impressionistas, pintou, inventei eu, a mesma mulher. Pintou-a com solidão mais americana do que francesa. Uma solidão que durou três anos, de 1924 a 1927, o tempo que demorou a pintá-la.
Em vez da tensão de Degas, Hopper surpreende o seu modelo em incómodo repouso: a mesma (quase a mesma) estranha articulação das pernas. Pernas que já só por hábito se bifurcam em resignada abertura, sem esperança de que as visite a vida que o sangue amplia e endurece. A cabeça não descansa, tombou apenas. O cabelo apagado, já sem o incêndio que se vê na mulher nua de Degas. E são, inventei eu, uma e a mesma mulher. Passou de Degas a Hopper, o que a admiração do americano pelo francês, que já não fui eu a inventar, mais confirma.
Do banho parisiense novecentista para esta nudez reclinada e americana (Washington?) mudou tudo na vida dela. Bastaria dar a volta e vê-la, à mesma mulher, de frente: adivinhamos olhos fechados e que se negam na deitada mulher de Hopper, ao contrário dos olhos curiosos ponta de malícia do húmido modelo de Degas.
As mulheres que Hopper pinta – as que vi e foram poucas – têm um ar clean e muito do imóvel, mesmo se não vêm do banho. Tem efectivamente razão, a posição das pernas ainda lhe dá cabo dos ilíacos, ai isso dá. Mas, sendo a mesma mulher para pintores diferentes, e depois de trinta anos, deixá-lo, é que já se habituou.
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Certo e limpinho, Bea.
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Que olhar curioso (e pertinente), este do Manuel. 🙂
Concordo com, quase tudo. E acrescento, que a mulher de Hopper já não teve a felicidade de ter uma criada para a ajudar a limpar o corpo, em todas as suas curvas. 🙂
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A criada é a diferença entre Paris e Nova Iorque 🙂
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