O quadro é do fim do século XV e está no Museu Regional de Messina. Coisa siciliana.
O autor é desconhecido. Provavelmente um mestre flamengo. Talvez seja o Mestre da Lenda de Santa Lucia, assim chamado por ter pintado um episódio da vida da santa numa igreja de Bruges. Autor também de um belíssimo “Maria, Rainha dos Céus”. E foi o que consegui saber dele, deste modesto e inominável holandês.
Esta “Pietà i Simboli della Passione” é um assombro. Dois em um, é Pietà ou é Crucificação? O “Maestro” num quadro pintou dois. De baixo para cima, de cima para baixo. Um, tradicional, o de baixo, gratificando sem sobressalto as nossas expectativas com uma Pietà que cumpre as regras: pintura agónica, austera, piedosa.
Mas se os olhos subirem de repente, em cima passamos a outra pasmosa dimensão. O Mestre, o lendário mestre, desafia-nos para uma estética de colagem: pairam no ar rostos recortados, mãos implausíveis, objectos de tortura. Pode ser que tudo, caveira incluída, faça parte de uma narrativa ainda escolástica mas, vista hoje, esta pintura confunde (mais do que os delírios de Bosch) tempos e códigos, antecipando surrealismos e imagéticas pop.
Que tormentos teológicos, que inconfessáveis devassidões simbólicas terão passado pela cabeça e gloriosa mão do Mestre da Lenda de Santa Lucia?
Que outra coisa posso querer que não seja recuperar a memória de ilustres e às vezes esquecidíssimos mortos. Como este Mestre Sem Nome que não fosse ser ele o mestre desta Lenda De Uma Santa e já o teríamos mergulhado no escuro mar do esquecimento. Como este Mestre que nos abre os olhos para os olhos com que, entre piedade e paixão, aqui ele mesmo nos olha.