Chego ao fim. Foi na Gulbenkian, no âmbito de um evento muito bem organizado e desassombradamente festivo, chamado O Gosto dos Outros. Escolhi dez cenas marcantes da História do Cinema. As mais marcantes de sempre. Tão marcantes, afinal, como mais 1001 cenas que mereciam também estar aqui.
JAWS (1975), de Steven Spielberg (Tubarão)
cena dos três caçadores no barco a comparar cicatrizes e o discurso do USS Indianapolis
Numa boa parte das cenas que escolhi celebra-se a mulher. Acabo o meu decálogo com uma cena de celebração masculina. O filme é Jaws, que muito crítica contemporânea abomina, como abomina Spielberg. Esta cena é a prova de que estão enganados. Três homens à caça de um tubarão assassino, conversam num barco, à noite. São três actores, Robert Shaw, Roy Scheider e Richard Dreyfuss. Robert Shaw era um actor shakespeariano, intérprete de Harold Pinter e Peter Brook. Bebia como um doido, fez a vida negra nas filmagens a Richard Dreyfuss, e esteve para o matar com uma agulheta de apagar incêndios. Depois desta cena, que vamos ver, prometeu a Dreyfuss que fariam Shakespeare juntos.
Esta cena está aqui para celebrar a grande amizade masculina. É, pode dizer-se, uma cena de amor entre homens – um amor dessexualizado, tão carregado de afectos como de humor, uma relação de reconhecimento da valentia e ao mesmo tempo de auto depreciação e de desdramatização: “I drink to your leg”, “OK, we drink to our legs”.
A empatia das personagens é genuína, eléctrica quase, e passou das filmagens para a vida real. Shaw e Dreyfuss beberam mesmo juntos, renderam-se um ao outro e planearam o Shakespeare que nunca fizeram, porque Shaw morreu com um enfarte do miocárdio.
Já agora, o monólogo do USS Indianopolis foi reescrito por Shaw, que além de actor, escreveu romance e teatro.
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Ficou aqui a minha escolha. Dez cenas criminosamente isoladas de outras mil que fazem a glória do cinema. Este é o cinema que eu amo, o cinema com que cresci e me converteu no que sou. O cinema é, será sempre, uma sala e um ecrã, no qual em melodramas, westerns, comédias, terror ou musicais passam homens e mulheres gigantescos, rostos de sete metros, aventureiros e heróis. A aventura do cinema, para mim, como acontece em Persona, é a mulher, a Bibi Andersson, que leva pela mão o miúdo de 13 anos que continuo a ser. Que o cinema abuse sempre de mim e o Senhor seja louvado.
Embora não comentando os dez filmes escolhidos, li o que escreveu sobre todos. Portanto, muito obrigada por fazê-los comuns de muitos. Alguns, como “Tubarão”, sou capaz de ver, na certeza de recusar os meus olhos à ferocidade daquela dentuça que arrepia só de pensar.
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Bea, tem medo dos tubarões? Sem eles lá perdia o mar uma parte da animação… Obrigado pelo seu comentário., claro 🙂
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Gostei, sobretudo pela celebração da amizade masculina, que sim, não tem nada de “paneleirices”. E que só quem tem amigos que comunicam com tudo, com os olhos, mas também com os olhos, os gestos e os risos tontos, compreende…
E sim, Manuel, os primeiros três filmes são bons (embora comecem logo a “arrepiar” caminho no dois…), tal como Spielberg, que tenho a sensação de que quase só tem feito os filmes que quis,
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