A primeira vez que nos encontrámos, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, este filme entrou pela minha vida dentro. Trouxe com ele, por junto, um vale de lágrimas, uma aflição de amor e medo, a certeza de que, pelo que via na cara e no corpo a desabar de John Wayne, ainda tinha muito ou quase tudo a perder por praticamente ainda nada ter eu perdido, a não ser a pátria angolana que eu julgava ser a minha.
Hoje, quando me encontro com The Searchers é já a minha vida e dois amores perdidos, a minha Guerra da Secessão, que leva os nomes de Bénard (ou só João) e de Cintra Ferreira (ou só Manel). Nem The Searchers, nem John Ford esperariam que eu metesse entre Wayne e Natalie, entre pioneiros e índios, estes dois, João e Manel, cavaleiros vigilantes, Ulisses perdidos numa viagem que também me espera. Tenho neste filme os meus cinéfilos mortos.
THE SEARCHERS (1956), de John Ford (A desaparecida)
cena de resgate de Natalie Wood por John Wayne
Vamos agora falar daquele que é, com mais cem outros filmes, o mais belo filme da história do cinema. Chama-se The Searchers (A Desaparecida). Se quisermos dizer as coisas de uma forma simples, é um western e realizou-o John Ford. Godard, no estado de incontrolada exaltação estética que é o seu estado natural, comparou-o à Odisseia de Homero. A mim parece-me uma pura tragédia grega. O filme começa e adivinhamos uma história de amor proibido e nunca consumado de John Wayne pela cunhada. Mal percebemos isso e logo um ataque dos índios mata a família toda, menos Debbie, a menina mais nova, o anjo da família que os índios raptam. John Wayne, que é neste filme, um tipo raivoso, cheio de ressentimento, vai dedicar os anos que se seguem a perseguir os índios e a tentar localizar a sobrinha desaparecida.
Vai com ele um meio-sobrinho e meio índio, meio-irmão de Debbie. A este meio-índio move-o a vontade heróica de resgatar a meia-irmã. Mas ele sabe que John Wayne leva às costas um alforge de ódio e de preconceito e só quer encontrar Debbie para a matar, poupando-a, quer ao opróbrio da vida com os índios, quer à vergonha que seria voltar a trazê-la para o meio dos brancos, depois da perda da inocência com os selvagens.
Poucas vezes o cinema filmou um olhar tão carregado de maldade, como o dos olhos maus e impiedosos de John Wayne. Vamos ver a cena em que eles atacam o acampamento índio e encontram Debbie que é Natalie Wood.
Este movimento, o do homem que agarra e ergue em peso uma jovem mulher e a levanta aos céus, para depois a segurar contra o peito, é um gesto que nos resgata de todo o preconceito, de toda a amargura e ressentimento. Quando a voz cansada e grave do John Wayne diz aquele manso, “let’s go home, Debbie”, por mais desgraçada que seja a caverna onde estamos, por mais desérticas que sejam, como estas, as montanhas onde somos peregrinos, desiludidos e vencidos, todos acreditamos que também nós voltaremos um dia a casa, aos braços de quem nos ame e proteja.
John Wayne, herói sem lar que o espere, Ulisses sem Ítaca coisíssima nenhuma, redime-se num dos mais belos planos da história do cinema, momento epifânico em que erguendo Nathalie Wood, contra o azul e as nuvens dos céus, a perdoa. Ou quem sabe, talvez tenha sido esse prodigioso e humaníssimo medo que vemos nos olhos de Natalie Wood a fazê-lo desistir de ser o anjo negro da vingança que vinha preparado para cortar a garganta juvenil. É impossível ver esta cena e não sentirmos a nossa garganta de espectador a afligir-se, a torturar-se, a comover-se.
Há uns bons anos, a visitar a Capela Sistina com a Antónia Fonseca, no meio de turistas de mil línguas, extasiados com o tecto pintado por Miguel Ângelo, ouvimos um miúdo dizer a outro, num sonoro português: “Eh pá, fixe, a cena do ET, a cena da criação.” Eu vejo esta cena de John Ford e só posso dizer, “Ah, meu Deus, fixe, a cena de John Wayne, a cena da redenção.”
E no final aquela bisarma desengonçada, solitária, depois de ter organizado a vida dos outros, lá fora, na terra amarela, enquadrado pela porta da casa onde reside naquele momento a felicidade, e que se lhe fecha. O ecrã fica negro e o coração pequenino…
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Gonçalo, estamos juntos: o plano de abertura e o plano final são do além.
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