
Deixem-me falar de uma espécie relativamente rara de intelectual, o intelectual guerreiro. E começo já por requerer o extremo favor de ninguém confundir a nomenclatura com meninos guerreiros, meninos de oiro ou afins.
Um exemplo meritório e controverso dessa categoria de intelectuais foi, no século XX, o escritor Ernst Jünger. Militar durante a I Grande Guerra, Jünger cantou, sem condescendência, a glória e a brutalidade da guerra, em “In Stahlgewittern” (“Tormentas de Aço”).
Capitão das tropas alemãs, na II Guerra, conviveu e terá protegido Picasso e Cocteau, durante a Ocupação, em Paris, insofismável prova da sua francofilia. Foi soldado, botânico, zoólogo, entomologista e poeta. Do mal que lhe conheço a obra – dois romances, “Sobre as Falésias de Mármore” e “Eumeswil“, e alguns ensaios -, elejo “Eumeswil”, um romance em que uma anarquizante liberdade individual persiste, servindo qualquer forma de poder: “A igualização e o culto das ideias colectivas não excluem o poder do individuo. Pelo contrário: nele se concentra o ideal das multidões como no foco de um espelho côncavo”. É o que escreve Jünger, mais adiante dizendo: “Não fracassamos pelos nossos sonhos, mas sim por não termos sonhado o suficiente”.
Defensor de uma revolução conservadora durante a República de Weimar, seria acusado de simpatias nazis, apesar das distâncias que sempre guardou, recusando-se a entrar no partido. Walter Benjamin acusa-o de ser um executante fascista da guerra de classes. Mas Jünger não só recusa colaborar com os nazis, como se demite da liga de antigos combatentes a que pertencia, quando dela são afastados camaradas seus judeus. Detestava Hitler, e nos seus “Diários” manifesta desprezo pelos nazis e vergonha pelas estrelas amarelas pregadas às roupas dos judeus. Ao vê-las, depois, diz ele, “fico enojado a olhar para os uniformes, as divisas douradas, as condecoração, as armas, coisas cujo brilho eu tanto amava”.
Jünger está também associado ao atentado contra Hitler (cujo plano conheceria), e é o exemplo de um espírito livre, suficientemente equidistante dos poderes para poder garantir a sua an-arquia pessoal: “Cortejar as boas graças: também isto é uma arte. A expressão deve ter sido inventada por alguém que teve a mesma sorte da raposa com as uvas”.
Se eu não levasse a vida vergonhosa que levo, já teria lido mais e talvez tivesse a coragem de vos dizer que “Sobre as Falésias de Mármore” é bem capaz de ser uma extraordinária alegoria da barbárie nazi. Seria até capaz de relatar as razões da admiração que Miterrand lhe tinha e do escândalo que se estampou na cara da Alemanha intelectual quando, em 1982, lhe atribuíram o prémio Goethe. Morreu com 102 anos, a um mês dos 103 – aos 100 convertera-se ao catolicismo.
