
A moral em arte não risca. Bebo Valdés, que, se vivo, teria hoje 100 anos, foi grande nos anos dourados da música cubana. Nas décadas de 40 e 50, Bebo tocou rumbas, danzón e mambo. De vez quando, cruzou ritmos afro-cubanos com o jazz, o que fez dele um deus no mais lendário dos cabarets, o Tropicana, que acabou por dirigir.
Bebo Valdés é neto de escravos. Aos 17 anos, veio estudar música em Havana, ganhando a vida a descascar batatas. Cantava (o que eu, para meter um toque pessoal nisto, jamais poderia ter feito) e tocava maracas (tão fácil que talvez eu pudesse ter tentado). Foi grande entre os grandes e ensinou Nat King Cole a cantar em espanhol.
Depois chegou Fidel. E vieram com ele os seus barbudos. Para Bebo o ritmo mudara. Um dia, tinha um dos seus músicos à espera, à porta de casa, com fuzil revolucionário ao ombro, explicando-lhe, em compasso binário simples, que quem não é por nós é contra nós. Bebo tinha pai, mãe, mulher e cinco filhos. Foi comprar uma caixa de fósforos ao México e nunca mais voltou a Cuba. A mulher ainda soube que ele se ia embora. Aos filhos nem disse adeus. Um pai destes não se recomenda a ninguém.
Do México viajou para Estocolmo, onde viveu três décadas. Três esquecidas décadas a tocar em hotéis. Ressuscitou nos anos 90, quando Paquito D’ Riviera lhe editou o cd “Bebo Rides Again”. Por causa desse cd, “El Caballón”, como era conhecido o seu metro e oitenta e quatro, voltou a respirar pelas mãos. E que bem que Bebo respira quando as mãos dele tocam piano. Bebo, o homem que abandonou mulher e filhos, voltou a ser uma estrela da música mundial, com direito a um documentário, “Old Man Bebo”. Mesmo sem o ter visto, considero-o já uma obra-prima (ganhou prémios nos festivais de Tribeca e Barcelona).
Chucho Valdés é filho de Bebo. Tinha 19 anos quando o pai o deixou a ele, à mãe, aos avós e aos irmãos. Acompanhara o pai para todo o lado e chegara a pianista na orquestra dele. Em 1960, ninguém disse a Chucho que o pai ia partir. Nem ao aeroporto o levaram. Quando descobriu, jurou à mãe que nunca a abandonaria. Cuidou dela e dos irmãos e converteu-se no maior pianista de Cuba.
Tocou com músicos fabulosos, nunca se envolveu em política e, sobretudo, recusou fugir da ilha cercada. Hoje convidam-no para tudo. Em Montreal, tocou na igreja da Santíssima Trindade, santuário de concertistas clássicos e de um público reservado e frio. Conta ele: “Primeiro toquei «Les Feuilles Mortes» em estilo barroco e quando acabei com um prelúdio de Bach o público pôs-se em pé e começou a gritar. Então, meti tumbaos a Debussy. Faço o que me apetece.” Dizem que é o melhor pianista do mundo. Ele diz que não, que é o pai!
São os dois, como se pode ver nestes dois registos em que tocaram juntos, antes que Bebo morresse, voltando a deixar Chucho sozinho. Bebo terá sido mau pai. Chucho foi o melhor dos filhos. Está visto: a moral não toca piano.
Sim… nem escreve, nem pinta, Manuel.
A moral é outra coisa…
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🙂
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…e eu desejo – para grande bem deles – que tenha milhares de seguidores nesta página negra de tanta cor.
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Os Valdés merecem tudo. 🙂
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