Batendo nos fins de tarde

Deviam, as memórias, ser cada vez mais ténues. Mas vêm, em gigantesco assombro, rasando as manhãs, batendo nos fins de tarde, forte caudal de águas lunares, reflexos luminosos a rasgar as trevas. O passado é o sangue do presente, agitado, de uma feroz e persistente presença. Tenho a velhice cheia de gritos juvenis. Hoje, como há oito anos quando escrevi esta nota, volto a ter 20 anos, volto a embarcar nesse camião fervente, de corpos na busca utópica de um destino. 

multidão
a multidão

Podia escre­ver um livro: bastava-me dizer tudo o que não sei.

Em 1975, na cidade do Lobito. Gos­tava de me ter visto. E se me visse agora, veria exac­ta­mente o quê?

Era uma coluna de camiões a atra­ves­sar a cidade sur­pre­en­dida. Milha­res de umbun­dos. Vinham do mato, dos kim­bos. Vinham de bair­ros que os bran­cos nem sus­pei­ta­vam. Nenhum daque­les homens era só um homem: che­ga­vam e entra­vam como uma mul­ti­dão, uma epi­de­mia que desa­guava no san­gue da cidade. Podia escre­ver um livro com o que já então não sabia sobre essa mul­ti­dão umbunda do éme pé lá. Pequena mul­ti­dão com­pa­rada com a gigan­tesca, her­cú­lea multidão, que a Unita nes­ses dias havia de juntar.

Num dos camiões iam os meus vinte anos. Eu ia sozi­nho. O vírus branco no meio da mul­ti­dão bantu. O rapa­zi­nho de Luanda no meio dos umbun­dos, rapa­zi­nho de óculos e barba mal feita. O meu camião negro, que o MPLA tra­zia para se mani­fes­tar con­tra o galo negro de Savimbi, can­tava em umbundo con­tra o chi­co­ro­nho, o colono, o branco que tinha de se ir embora. O camião negro em que eu ia olhava-me com um misto de iro­nia e com­pai­xão enquanto can­tava em umbundo: branco, colono, vai-te embora.

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O que é que eu veria se, agora, no meio dos camiões mili­tan­tes, inde­pen­den­tis­tas, ango­la­nos, negros, visse os cabe­los sol­tos, hip­pies, de um espú­rio rapa­zi­nho branco… Podia escre­ver um livro com esta ideia: a inde­pen­dên­cia era a única forma de expe­ri­men­tar a minha soli­dão branca.

Podia escre­ver um livro se Miles Davis, a trom­pete e soli­dão, não o tivesse escrito já.

2 thoughts on “Batendo nos fins de tarde”

  1. E depois? Quando é que chegou o dia em que o rapazinho tomou consciência que por mas que o quisesse deixar de ser, era aos olhos deles, ainda e sempre, o colono branco?
    ~CC~

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