Quando, no Salon de 1865, Édouard Manet expôs a “Olympia” que acima se pode e deve ver, caíram, sem que os parisienses soubessem o que isso era, o Carmo e a Trindade. Sobre o almofadado leito recosta-se uma mulher nua, flor obscena na orelha esquerda, quase omitido e por isso tão presente, “o íntimo tosão escondido pela mão em leque que Olympia pousa firmemente sobre a coxa”, como escreveu Michel Leiris no melhor texto que conheço (e só conheço ínfima parte) de exaltada análise deste quadro de um metro e trinta por um e noventa.
É bom de ver, e os críticos parisienses bem o sabiam, que a “Olympia” de Manet, como expressamente Manet quis que fosse, era uma prima tardia da “Dama Despida” criada por Ticiano para o nobre Guidobaldo della Rovere e que outros e posteriores proprietários correram a esconder debaixo de diáfano manto mitológico chamando-lhe “Vénus de Urbino”, com desculpas de Giorgione e de outras Vénus do próprio Ticiano.
Sobre a “dama despida” de Ticiano caem direitinhas duas hipóteses: a de ela, dama, ser um modelo que o pintor pagou ou a de ser a própria mulher de Guidobaldo II, duque de Camerino e depois também de Urbino. O duque encomendou este quadro para o colocar na sua câmara conjugal, celebrando assim um erotismo que teria lugar dentro de portas, o que parece afastar a possibilidade de ser a “dama despida” uma cortesã que lhe propiciasse favores.
Na pintura de Ticiano, vejo a mesma pose que Manet retomaria, porventura ainda mais oferecida, nenhuma fita de veludo negro a enfeitar o pescoço despido, os iguais e frutados seios, a diferença (e que diferença) da mão esquerda se deixar cair dedilhante e apreciativa sobre (quase dentro) o dourado tosão que mais tarde Manet faria “Olympia” esconder atrás da mão firme. Ninguém, na Veneza de 1538, se revoltou como na segunda metade do século XIX se indignaria essa Paris que já vira, um século antes, a fraternal e igualitária Revolução e estava à beira, um lustro depois, de ver a ainda mais revolucionária Comuna. Olhamos para estes dois quadros e vemos que é quase a mesma cama, os mesmos alvos lençóis, as mesmas serviçais que as contingências de época reduziram a uma e africana, o cão felpudo agora transformado, a pedido de Baudelaire, em gato negro de olhos faiscantes. Ou será gata?
O que é que, então, fez a revolta dos informados críticos parisienses? O quarto em que Manet fechou “Olympia”, sem essa linha de fuga exterior que nos tranquiliza em Ticiano? O corpo mais prosaico, tão contemporâneo, do modelo de Manet? Ou só, e como longamente Michel Leiris explicou, a fita de veludo negro que enfeita o pescoço de Olympia? Ou os sapatos que Olympia teima em não descalçar?