Bem sei que o país está ufano e, turístico,, e já só de esguelha olha para o deficit. Mas o meu sentimento de culpa é inabalável. Parte do deficit do país está em duas estantes à minha frente. Devia ter-me prometido, de joelhos e a mim mesmo, não comprar mais de 1.001 “dêvêdês”, mas comprei. Só de filmes. Porque, como o odioso Billy the Kid que não contava mexicanos entre os tipos a quem furava o coração com uma bala, também não conto “dêvêdês” de séries televisivas.
A derrapagem descontrolada, a hemorragia orçamental, são bem visíveis na forma como as estantes com filmes foram, como eucaliptos, comendo terreno à floresta dos livros.
Nas minhas estantes, o pai fundador Griffith, os discutíveis irmãos Cohen, a mafiosa obra de Coppola, o conservador Ford a quem a ordem alfabética colou o iconoclasta Godard, empurram séculos de civilização com cega energia. De Platão a Tolstoi, da “Ilíada” aos sete vagamente entumecidos volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, os livros acantonam-se, frágeis, tigres de papel tremendo e temendo as faúlhas de tanta luz, tanta explosão.
E para quê? Em primeiro lugar, não valem nada a não ser a imensa gargalhada de hiena que a Netflix, e mais umas inenarráveis plataformas de streaming, soltam com a altivez de quem diz «isso já não serve para nada». Em segundo e patriótico lugar, os mil e um filmes na minha estante, de improdutivos, só dão razão às agências de rating, e são mil e uma agulhas de traição que fui espetando no coração do cinema a que jurei fidelidade.
De repente, com a boca a saber a madalenas, lembro-me do Grande Auditório da Gulbenkian na noite em que, mil e duzentas pessoas a transbordar das cadeiras, balcão e plateia em overbooking, o João Bénard subiu ao palco para apresentar, em sessão dupla, o “Nosferatu” de Murnau e o “Nosferatu” de Herzog.
Parecia o costume, uma sala contente de o ver e ouvir, à espera de imagens e movimento. Veio o escuro e veio a mudez do filme de Murnau, num tempo em que as cinematecas ainda projectavam filmes mudos sem música. A surpresa do total silêncio, para uma plateia sem hábitos desse cinema, sem o hábito dos gestos desmesurados de Max Schreck o mais nosferatu, o mais vampiro actor que algum dia se filmou, fez a sala tossir, pigarrear.
Normalmente, abafados pela banda sonora, no cinema não nos ouvimos. Ali, a sala ouvia-se: mexer o rabo na cadeira ouvia-se, engolir ouvia-se, bater as pestanas também. E a sala, nervosa de se ouvir, frente a um ecrã de sombras e silêncio, começou a rir-se. Foram os primeiros vinte minutos de cinema mudo mais memoráveis de que me lembro: até que o filme de Murnau, sinfónico, raptou os risos, as gargantas e os catarros, os rabos inquietos e, dos anos 80 em que estavam, levou os espectadores para os anos 20.
Nenhum DVD me dará a experiência que é o espectáculo de uma sala a render-se a um filme, uma sala a descobrir o sublime em gestos que, sem a confiança da entrega, seriam ridículos, 1200 pessoas desconhecidas, odiosamente diferentes, com o sangue gelado pela nocturna silhueta de um vampiro que só pode ser vencido pela gloriosa luz da aurora.
O que podem contra os vampiros do Auditório da Gulbenkian os exércitos de 1001 DVD?