Hermes Baby

Estou eu a começar a sentar-me em 2019 e não é que me olha nos olhos a minha velha Hermes Baby? Tem 53 anos e está muito bem conservada, o que as fotografias não desmentem. Eis, o que me faz sentir bem, hoje. É mesmo por ter o meu passado bem conservado que mais sinto vontade de entrar em 2019. No meu passado, vejo o meu futuro.
Um excelente 2019 a todos.

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A minha Hermes Baby

Esta é a  única coisa verde de que gostei em toda a minha vida. A única coisa verde de que gostarei em toda a minha vida. Durou, durou, durou: dos meus 12 anos até surgir o milagre da informática. Eis a minha Hermes Baby.

Fez rádio no Equipa de Brandão Lucas e no catolicíssimo Água Viva, nos trópicos – já escrevia sozinha as minhas pouco mais do que adolescentes rubricas, O Rei Morreu Viva o Rei e as Crónicas do Aracnídeo. E rádio ainda foi o que fez em Portugal, muitos anos depois, com o Sena Santos, nos noticiários da RDP. 

Bateu os aeroportos de Luanda, Lisboa, Lobito, Paris, Funchal, Nova Iorque e Los Angeles, tanto fez a gare de caminho de ferro do Huambo, como a de Hendaye e a de Grenoble; palmilhou estradas de Angola e atravessou a Espanha de Franco, estavam para ser executados dois bascos. Passou os Pirinéus, deliciou-se com os Alpes. Escreveu, cinéfila e festivaleira, de Tróia, de Cannes, de Berlim, de San Sebastian. Entrevistou a Helma Sanders-Brahams com vista para o Wannsee, visitou a Cinémathèque Française e a Filmoteca Española. Começou, em San Francisco, a escrever o livro-catálogo sobre Francis Ford Coppola.

A minha Hermes Baby teve uma juvenil costela revolucionária: fez a revolução, pouco cultural, pouco canónica, em Angola — o que se gastou em stêncil, meu bom Deus. Esteve na frente de combate da dipanda, Lobito, Sumbe, Luanda. Atacou a reacção e a social-reacção. Foi a França, voltou a Portugal. Bateu Direito, em Lisboa, Direito em Luanda, aflorou Sociologia em Grenoble, para acabar a servir a Faculdade de Letras, da Universidade Clássica de Lisboa: tratou-a bem o José Gabriel e nem o M.S. Lourenço, de Filosofia Contemporânea, e muito menos o Padre Manuel Antunes, se zangaram com ela. Funcionou na Cinemateca, tantos anos; depois, emprestada aos ciclos da Gulbenkian, todo o Ciclo de Cinema Musical e a Ficção Científica, recebeu ordens de João Bénard da Costa. Internacionalizou-se nos Cahiers du Cinéma, graças ao senhor Manoel de Oliveira, e no Dictionnary of Films and Filmmakers, por intermediação do Rui Santana Brito. Proletarizou-se nas revistas do voluntarioso Duarte Ramos, aburguesou-se no Expresso de Balsemão em mil críticas de bola preta, aligeirou-se num divertido Semanário sob a asa nonchalant de Vitor Cunha Rego.

Escreveu com indignação, algum idealismo, pedinchou, protestou, rejeitou, amou quase sempre, mas não me lembro que, verde de sua natureza e verde da inveja do imprestável usuário, tenha verdadeiramente odiado. De vez em quando ria-se e escrevia vermelho. Está ali, a dois passos do pc, num recolhimento verde e vivo. Já me disse: se um dia precisares… nunca se sabe.

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de vez em quando escrevia a vermelho