
A história está muito bem contada aqui, num das mercearias literárias onde me vou regularmente abastecer em busca de fruta fresca e boa. Mas como não quero que falte nada aos frequentadores desta Página Negra, resumo, fazendo breve uma história longa.
Eu disse fruta fresca ali atrás, mas a verdade é que esta sumarenta peça foi colhida em 1921. William Faulkner, que era então um passarão de 24 anónimos e ignorados anos, abandonou a Universidade lá no Mississipi e foi à aventura trabalhar numa livraria, que não dava para os trocos. Mas o mentor dele conseguiu-lhe emprego como chefe de uma pequena estação de correios, na mesma universidade que Faulkner abandonara.
Não há memória na História dos Correios, em qualquer século ou lugar, do Paleolítico ao aquecimento por efeito dos gases de estufa, de um carteiro tão atrabiliário, incompetente e ressentido. Faulkner era o único funcionário e abandonava o balcão para ir escrever nas traseiras, armava jogos de cartas com os kambas lá da banda dele, abria e fechava a estação às horas que lhe dava na realíssima e faulkneriana gana.
Levantou-se contra ele uma surda onda de hostilidade, artigos nos jornais de estudantes, enfim, o tipo de protestos em que os cidadãos de Manchester se têm inspirado para azucrinar a cabeça de José Mourinho.
José Faulkner, perdão, William Faulkner não era do género de vergar a mola ao primeiro pé-de-vento. Não só continuou a infringir todas as regras, como se locupletou em transgressões que já implicam uma certa vizinhança babosa com a luxúria.
Vejamos e tomemos nota, que pode um dia fazer-nos falta nalgum emprego mais aziago: Faulkner abria e lia as revistas que vinham para ingentes remetentes; certo correio, que lhe parecia trivial ou espúrio, atirava-o para o lixo ou para as profundezas do inferno; endereçava pedidos de envio para moradas erradas.
Na América, nesse tempo, e basta lembrar que ainda faltavam 97 anos para Trump ser aquilo que ninguém acredita que ele seja hoje, havia inspectores. E veio um inspector inspeccionar. No relatório do inspector está tudo o que eu acabo de relatar, mas em linguagem de gente e por boa ordem. Faulkner foi acusado de negligência, de permitir a presença de pessoas não-autorizadas no escritório e de com elas jogar golfe lá dentro, não atendendo quem estava ao guichet a tentar comprar um proletário selo de dois cêntimos.
O inspector, naquela irrepreensível linha protestante de raiz weberiana, ou vice-versa, tanto faz, quis dar uma oportunidade penitente ao jovem carteiro. Ele podia escrever um relatório refutando todas as acusações ou, pelo menos, uma parte e isso talvez lhe permitisse conservar o lugar e o valente salário.
Faulkner agarrou a oportunidade com umas mãos que tomara o nosso Vlachodimos Odisseas. Leia-se: «Enquanto eu viver no seio do sistema capitalista, é minha expectativa que a minha vida seja influenciada pelas exigências das pessoas cheias de dinheiro. Mas raios me partam se eu me sujeitar sentado, calado e virado para a frente, a todo o canalha itinerante que tem dois cêntimos para investir no selo para uma carta.
Aqui tem, Sir, a minha demissão.»
E depois venham dizer que o modernismo literário não é de um insufragado elitismo capaz de, com razão, enxofrar a mona a qualquer coreáceo neo-realista.
