
Páro. Um palmo de língua de fora. Na minha idade, as caminhadas rápidas de fim de tarde deixam-me sem fôlego, embora, a ter de morrer, o Père-Lachaise não fosse um local destituído de poética ironia. Estou, agora, junto ao n° 637 P de 1884. A campa pertence à 41ª divisão e está na 10ª linha, mesmo em frente à 40ª divisão. Ou melhor, é a primeira tumba a partir da 42ª divisão. A discreta campa guarda silêncio. Não diz nada sobre a beleza da mulher que nela está enterrada. Ainda menos sobre a aura romanesca que lhe re-desenhou a vida.
Esta manhã, a inspirar devagarinho o ainda fresco ar de Junho, desci as escadas do Grand Palais, as mesmas escadas que Henri (ou seria já Alain?) descia quando a viu. Foi também em Junho, mas de 1905. Henri começava a deixar de odiar Paris com ódio de camponês e viera ao “Salon de la Nationale”, à exposição. Descia os degraus a dois e dois, com a despreocupação dos 18 anos. Primeiro foi a elegância, alta, loira, a surpreendê-lo. Logo a seguir os azulíssimos olhos que foi impossível, depois, descrever na carta que enviou a Jacques Rancière, o seu melhor amigo. O olhar dele parou no dela, o dela no dele.
Num olhar falha-se ou cumpre-se uma vida. O dia de Henri, o que tinha de fazer, se havia obrigações, tudo se dissolveu no olhar da jovem mulher que outra mulher mais velha acompanhava. Seguiu-as, Cour-de-la-Reine primeiro, um bateau mouche a seguir e, por fim, o boulevard St. Germain onde as viu entrar no nº 12, quase na esquina com a rue du Cardinal Lemoine.
O que lhe diria Henri se tivesse podido falar com ela? Que, se queria ser escritor, no azul cândido dos olhos dela, plus simple et plus doux qu’une main de femme la nuit, se renovaram e confirmaram vontade e vocação? Durante os dez dias seguintes, vigilante, caminhando entre o Sena e St. Germain, esperou poder vê-la e falar-lhe. A 10 de Junho, vislumbra-a atrás duma cortina que se levanta. Julga que ela o viu também. Tem mesmo a certeza, contará ao amigo Jacques, a certeza de ela lhe ter fugazmente sorrido.
A 11 de junho ele continua à porta dela. Terá passado ali a noite? E ela sai de casa, livro de devoção na mão, para a missa de Pentecostes. Henri aproxima-se e, pouco mais de um sussurro, diz-lhe: Vous êtes belle… Belíssima, rosto redondo, boca tão bem traçada, olhos rasgados, nariz perfeito. Ela sabe que é bela e verdades destas não magoam ninguém.
Insiste, no fim da missa, e ela deixa-o acompanhá-la. Caminham lado a lado. Chamo-me Henri e terão conversado do sonho dele ser escritor, talvez de como pareciam frias as águas do Sena. Cruzavam a ponte da Concórdia e ele perguntou-lhe o nome. Os olhos azuis dela atravessaram-lhe a alma e pleine de noblesse et de confiance elle a dit fièrement: Mon nom ? je suis mademoiselle… Chamava-se Yvonne Marie Elise Toussaint de Quiévrecourt e, na ponte dos Inválidos pediu-lhe que, a partir dali já não a seguisse.
Henri está parado e, lá à frente, ela volta-se primeira e segunda vez. Para o ver outra vez? Para, nessa segunda vez em que tão demoradamente se volta, o ver pela última vez? Yvonne partia no dia seguinte. Para a província. Henri voltou, mas já nenhuma cortina balouçava na janela fechada. Não é um quer lá saber, mas pouco importa. Tinha a imagem, imagem dela, pequenina imagem de cristal, glass menagerie, que via sempre, estivessem abertos ou fechado os seus olhos.
Voltou ao Grand Palais um ano depois do primeiro encontro. Para a encontrar? E mente ao amigo Jacques: Elle n’est pas venue. D’ailleurs fut-elle venue, qu’elle n’aurait pas été la même. Mentes, Henri. É a mesma sim, mesmo que ela mude, que ela mudasse, a imagem de cristal dela já nunca mudará na tua cabeça. Será sempre obsessivamente a mesma e tu, meu caro Henri, bem devias, melhor do que ninguém, sabê-lo. Vence a timidez e fala então com a porteira do número 12, St. Germain. Ela casou. Partira para casar um casamento que a família arranjara.
Sento-me no salão do Lutetia, boulevard Raspail. Um chá, digo, enquanto revejo as minhas notas. Henri foi para Londres e as raparigas inglesas eram tão fáceis: nunca lhe pediam que não as acompanhasse. Voltou a Paris e foi jornalista. Literário, mas jornalista, até que o filho de um presidente, Claude Casimir-Perier, o contratou como secretário. Vivera uma relação semi-conjugal turbulenta, antes. Uma modista calorosa e emocional. Vai viver outra com a incandescente mulher de Casimir, uma actriz de quem se torna amante.
Ama-a? Henri amou a modista e amou a amante. Na cama, com galhardia e as boas más maneiras que a coisa exige. Mas há um Henri que não deixa de amar, e só terá amado, Yvonne. A esse Henri adolescente, chamou ele Alain, o autor de “Le Grand Meaulnes”, o romance onde, à maneira de Stendahal, ele “cristalizou” o amor do jovem de 18 anos fulminado por um azulíssimo olhar na escadaria do Grand Palais, na manhã de 1 de Junho, dia da Ascensão.
Henri nunca recalcou Alain. E de vez em quando deixava o adolescente voltar. À la recherche de Yvonne. Desse tempo nunca perdido. E voltou a encontrá-la. Casada ainda e com dois filhos. Henri deu-lhe uma das cartas que lhe escrevera. Ela, as mãos a arder, devolveu-lha logo. E ele deixa-a de vez para regressar ao corpo da actriz amante.
Mandar-lhe-á, no ano seguinte, a Yvonne e ao marido, o romance em que outra Yvonne, Yvonne de Galais, é o amor idealizado, uma cantiga de amigo e de amor. Assinou-o como Alain-Fournier para que, no século XXI o “Monde” lhe chamasse um dos 100 livros do século. Foi o único livro de Henri, ou seja, de Alain-Fournier. Tenente, morreria no ano seguinte, a combater os alemães, em Verdun. O corpo só foi descoberto, numa vala comum, 77 anos depois. Já decidi, hoje vou jantar ao Lipp e amanhã apanho o comboio para Verdun.
