De Abril a África, rompendo o cerco

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Foto de Alfredo Cunha

Estas foram as Bicas Curtas que servi no CM nos três últimos dias de Abril

O irritante de Abril
O irritante do 25 de Abril é o PCP. Armado em proprietário e patrão do 25 de Abril, o PCP exclui e afasta quem queira ter a visão aberta e larga da data, que consiste nestas duas coisas simples: deixámos de ter Pides e ganhámos a liberdade, para fazer dela o que quisermos. Ora, o PCP tem a visão reclusa do que chama “cumprir Abril”. Só que “cumprir Abril” é criar uma sociedade que, onde é feita, morre a liberdade e há novos e piores Pides.

Abril cumpriu-se: é a liberdade e a democracia. Poupem-nos à seca do catecismo vermelho e à seca do paleio reumático oficial. Abram a festa, pá, com mais beijos do que punhinhos fechados.

Romper o cerco
O confinamento rouba horizontes. Põe-nos sempre de dedo na ferida: ou gritamos contra os horrores de Trump ou contra a tutela da China, que tolheu a OMS. Lembro que Taiwan comunicou à OMS, a 31 de Dezembro, a transmissibilidade do Covid entre humanos. A OMS silenciou a informação até 20 de Janeiro. Taiwan não pode existir ou falar: a China proíbe.  Romperemos este cerco?

Faz hoje quase 6 séculos, Joana d’Arc rompeu o cerco de Orleães, e voltou a dar o sabor da vitória aos franceses na Guerra dos Cem Anos. Há 75 anos, os americanos libertaram o campo de concentração de Dachau. Eram cercos bem piores. Estamos obrigados à esperança.

A ciência salva
Um dos meus consolos contra o destrambelhado vírus, que nos fechou entre a cama e a cozinha, é ver que poupou África. Poucas vítimas, felizmente. E mais me alegra ver o africano Thierry Zomahoun, líder em iniciativas de educação, reclamar para África um papel de relevo na investigação científica, quer no Next Einstein Forum, em Dakar, quer no Instituto Africano de Ciências Matemáticas. Muitos alternativos e velhos progressistas anticoloniais diabolizam a entrada de África pela porta grande da ciência e tecnologia. Mas, que diabos, não é com micro financiamentos ou mini redes hidráulicas que a África sairá da cepa torta.

A liberdade é mesmo para ser livre

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As notí­cias via­ja­vam len­tas. Vinham por cami­nhos ínvios. Na ver­dade, as notí­cias não via­ja­vam: naquele tempo, deam­bu­la­vam. Como se um tipo que saísse de Lis­boa, para che­gar ao Porto tivesse de pas­sar por Paris.

Esta­vam quase a bater as 4 da tarde. Ali, para os lados do Hos­pi­tal Mili­tar de Luanda, eu gozava o remanso da Bibli­o­teca Naci­o­nal de Angola que era bem diri­gida pelo Prof. Carmo Vaz. Tinha, em cima da mesa, dois, tal­vez três livros. Um, era um con­cen­trado vita­mí­nico comu­nista cha­mado “Crí­tica ao Pro­grama de Gotha”, em que Karl Marx, um vigo­roso ante­pas­sado de Angela Mer­kel, ilus­trava as mas­sas sobre o que seria ver­da­dei­ra­mente a dita­dura do pro­le­ta­ri­ado e um par­tido da classe ope­rá­ria. Ao lado, humilde, estava um livro de John Lyons sobre outro dos meus bizar­ros inte­res­ses da época, a lin­guís­tica. E ia jurar que fazia pare­lha com uma obra recente de Noam Chomsky. Era, como se vê, uma bibli­o­teca bem apetrechada.

Interrompeu-me, então, o Jujú, um amigo do meu bairro, para me dizer ao ouvido, que a rádio sul-africana estava a dizer que, nessa manhã de 25 de Abril, em Lis­boa, os mili­ta­res tinham der­ru­bado Mar­cello Cae­tano. Foi assim que eu soube, em Luanda, uma caterva de horas depois e ao ouvido esquerdo, que a dita­dura tão por­tu­guesa de Antó­nio de Oli­veira Sala­zar, con­ti­nu­ada ago­ni­ca­mente por Mar­cello Cae­tano, tinha che­gado ao fim.

Não havia nada que a esma­ga­dora mai­o­ria da minha gera­ção qui­sesse tanto. Que­ría­mos que aquilo aca­basse. Que­ría­mos a liber­dade! Em pou­cas horas, com a galhar­dia e a feli­ci­dade de ter até um certo sen­tido esté­tico, uma acção mili­tar aca­bou com um regime que tinha um ines­ca­pá­vel tumor maligno a roer-lhe a alma ins­ti­tu­ci­o­nal e a con­ta­mi­nar e a apo­dre­cer a alma dos seus cida­dãos: era um regime fun­dado na repres­são da liberdade.

Mas tam­bém nunca tive dúvi­das de que que­rer a liber­dade tem mui­tas caras. Lembro-me, no ano mar­ce­lista de 1973, em Lis­boa, andava eu a roçar-me, em esqui­nas clan­des­ti­nas, pela extrema-esquerda, de uma con­versa perto da Ave­nida de Berna. A um então mili­tante do éme erre, con­fes­sei, com can­dura ango­lana, quiçá colo­nial, que que­ria ter a liber­dade de um con­certo dos Jef­fer­son Air­plane (por causa da linda e sel­va­gem Grace Slick), que que­ria par­ti­ci­par numa mani­fes­ta­ção vital à la Woods­tock. O que eu fui dizer. Uma liber­dade até à viri­lha, de resto ausente da “Crí­tica ao Pro­grama de Gotha”, era coisa de vade retro. E levei com um ser­mão con­tra os con­cer­tos rock, a droga, essa per­mis­si­vi­dade deca­dente que era o amor livre. Ele tinha estado na Ale­ma­nha Oci­den­tal, em Muni­que, e essa “deca­dên­cia” era hor­rí­vel. E o con­su­mismo? Ui, já me estava a ver a ter de des­pir as minhas ofen­si­vas levi’s ianques.

O epi­só­dio pode pare­cer cari­cato. É ane­dó­tico, sim, mas não é ane­dó­tico se se levar a sério o que tem por trás. Do MRPP ao PCP, a extrema-esquerda e, sobretudo, a esquerda comu­nista, luta­ram feroz e cora­jo­sa­mente, mais do que nin­guém, con­tra a dita­dura de Sala­zar, con­tra a PIDE, pagando nas suas vidas e mui­tas vezes com o corpo, essa luta heróica. Há uma epo­peia comu­nista! Mas o objec­tivo dessa luta não era a liber­dade. Era sim, o fim da dita­dura de Sala­zar para a subs­ti­tuir pelo regime que Marx des­creve com todos os subs­tan­ti­vos na “Crí­tica ao Pro­grama de Gotha”: criar uma dita­dura do pro­le­ta­ri­ado e um modelo social no qual, a liber­dade, esse luxo bur­guês, é dis­pen­sá­vel por­que está resol­vida pela natu­reza do regime.

O dia 25 de Abril é para mim o dia em que a liber­dade livre nas­ceu. E a liber­dade livre não tem pro­grama, nem dono. Veio de capi­tães, não tem que ter coro­néis. “Cum­prir Abril” é ape­nas viver a liber­dade de ser­mos a soci­e­dade que, no exer­cí­cio da demo­cra­cia, esse pobre, pro­saico, mas insubs­ti­tuí­vel regime (por enquanto, pelo menos), quei­ra­mos ser. E, por mais exer­cí­cios de inti­mi­da­ção cul­tu­ral a que seja­mos sujei­tos, a come­çar pelos da esquerda não-democrática, nós vive­mos em demo­cra­cia. E, agora, tam­bém em glo­ba­li­za­ção, o que faz com que a nossa vida seja dura e exija de nós, não a cul­tura da queixa e do res­sen­ti­mento com que facil­mente se atraem mos­cas, mas uma com­pe­tên­cia, uma raci­o­na­li­dade e uma cora­gem que temos de ir bus­car, numa pequena parte ao nosso pas­sado e em grande medida ao futuro.

Por obra e graça de uns capi­tães ide­a­lis­tas (mais uns do que outros, ou não fosse toda a vida humana um tea­tro de drama, tra­gé­dia e às vezes comé­dia), o dia 25 de Abril de 1974 foi o dia em que nas­ceu a liber­dade livre. Se fosse o dia em tivés­se­mos ficado sujei­tos à obri­ga­ção de Por­tu­gal seguir um exacto modelo de soci­e­dade, o 25 de Abril não seria evo­cado, como é e eu aqui tam­bém o evoco, o dia da ale­gria pura, da ale­gria de todos.

1º de Maio de 1974