
As notícias viajavam lentas. Vinham por caminhos ínvios. Na verdade, as notícias não viajavam: naquele tempo, deambulavam. Como se um tipo que saísse de Lisboa, para chegar ao Porto tivesse de passar por Paris.
Estavam quase a bater as 4 da tarde. Ali, para os lados do Hospital Militar de Luanda, eu gozava o remanso da Biblioteca Nacional de Angola que era bem dirigida pelo Prof. Carmo Vaz. Tinha, em cima da mesa, dois, talvez três livros. Um, era um concentrado vitamínico comunista chamado “Crítica ao Programa de Gotha”, em que Karl Marx, um vigoroso antepassado de Angela Merkel, ilustrava as massas sobre o que seria verdadeiramente a ditadura do proletariado e um partido da classe operária. Ao lado, humilde, estava um livro de John Lyons sobre outro dos meus bizarros interesses da época, a linguística. E ia jurar que fazia parelha com uma obra recente de Noam Chomsky. Era, como se vê, uma biblioteca bem apetrechada.
Interrompeu-me, então, o Jujú, um amigo do meu bairro, para me dizer ao ouvido, que a rádio sul-africana estava a dizer que, nessa manhã de 25 de Abril, em Lisboa, os militares tinham derrubado Marcello Caetano. Foi assim que eu soube, em Luanda, uma caterva de horas depois e ao ouvido esquerdo, que a ditadura tão portuguesa de António de Oliveira Salazar, continuada agonicamente por Marcello Caetano, tinha chegado ao fim.
Não havia nada que a esmagadora maioria da minha geração quisesse tanto. Queríamos que aquilo acabasse. Queríamos a liberdade! Em poucas horas, com a galhardia e a felicidade de ter até um certo sentido estético, uma acção militar acabou com um regime que tinha um inescapável tumor maligno a roer-lhe a alma institucional e a contaminar e a apodrecer a alma dos seus cidadãos: era um regime fundado na repressão da liberdade.
Mas também nunca tive dúvidas de que querer a liberdade tem muitas caras. Lembro-me, no ano marcelista de 1973, em Lisboa, andava eu a roçar-me, em esquinas clandestinas, pela extrema-esquerda, de uma conversa perto da Avenida de Berna. A um então militante do éme erre, confessei, com candura angolana, quiçá colonial, que queria ter a liberdade de um concerto dos Jefferson Airplane (por causa da linda e selvagem Grace Slick), que queria participar numa manifestação vital à la Woodstock. O que eu fui dizer. Uma liberdade até à virilha, de resto ausente da “Crítica ao Programa de Gotha”, era coisa de vade retro. E levei com um sermão contra os concertos rock, a droga, essa permissividade decadente que era o amor livre. Ele tinha estado na Alemanha Ocidental, em Munique, e essa “decadência” era horrível. E o consumismo? Ui, já me estava a ver a ter de despir as minhas ofensivas levi’s ianques.
O episódio pode parecer caricato. É anedótico, sim, mas não é anedótico se se levar a sério o que tem por trás. Do MRPP ao PCP, a extrema-esquerda e, sobretudo, a esquerda comunista, lutaram feroz e corajosamente, mais do que ninguém, contra a ditadura de Salazar, contra a PIDE, pagando nas suas vidas e muitas vezes com o corpo, essa luta heróica. Há uma epopeia comunista! Mas o objectivo dessa luta não era a liberdade. Era sim, o fim da ditadura de Salazar para a substituir pelo regime que Marx descreve com todos os substantivos na “Crítica ao Programa de Gotha”: criar uma ditadura do proletariado e um modelo social no qual, a liberdade, esse luxo burguês, é dispensável porque está resolvida pela natureza do regime.
O dia 25 de Abril é para mim o dia em que a liberdade livre nasceu. E a liberdade livre não tem programa, nem dono. Veio de capitães, não tem que ter coronéis. “Cumprir Abril” é apenas viver a liberdade de sermos a sociedade que, no exercício da democracia, esse pobre, prosaico, mas insubstituível regime (por enquanto, pelo menos), queiramos ser. E, por mais exercícios de intimidação cultural a que sejamos sujeitos, a começar pelos da esquerda não-democrática, nós vivemos em democracia. E, agora, também em globalização, o que faz com que a nossa vida seja dura e exija de nós, não a cultura da queixa e do ressentimento com que facilmente se atraem moscas, mas uma competência, uma racionalidade e uma coragem que temos de ir buscar, numa pequena parte ao nosso passado e em grande medida ao futuro.
Por obra e graça de uns capitães idealistas (mais uns do que outros, ou não fosse toda a vida humana um teatro de drama, tragédia e às vezes comédia), o dia 25 de Abril de 1974 foi o dia em que nasceu a liberdade livre. Se fosse o dia em tivéssemos ficado sujeitos à obrigação de Portugal seguir um exacto modelo de sociedade, o 25 de Abril não seria evocado, como é e eu aqui também o evoco, o dia da alegria pura, da alegria de todos.

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