O espião de ouro e chamas

pedido emprestado a “O Caçador”

O espião era a mais bela paisagem mental da Guerra Fria. Dizia-se que qualquer um daria o cu e cinco tostões para ser da CIA ou do KGB. Mas nem vale a pena exagerar, nem hoje a expressão tem o sabor desse tempo: oh, onde andarão as neves e as mulheres de então.

O que sei é que em Julho de 1974, quando fazia mais frio no Huambo, uma fina camada de gelo cobria, por vezes, os charcos de água no mato à volta da Escola de Aplicação Militar (EAMA), onde eu fazia o curso de oficiais milicianos. Fomos a mais desabrida recruta que algum dia cruzou a porta de armas da EAMA. Protestámos, fizemos levantamento de rancho, acertámos com papos secos mais rijos do que cornos na cabeça de um sargento mais casmurro, uma anarquia que os meus maravilhosos instrutores viam com a resignada paciência e a ultrajada sabedoria de mais velhos. E eram eles, o alferes Caji, grande basquetebolista luandense, e o africaníssimo furriel Neto, que eu ia jurar que se chamava também Agostinho.

Lembro-me, com uma doce angústia, que trazia dois livros nos bolsos da farda. Um era do Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões”, edição de bolso da LBL Enciclopédia. O outro era de Herberto Helder, “A Vocação Animal”, publicado em Maio de 71 pela dom quixote. Eram os meus desaceleradores. E eram, também, as linhas de fuga dessa recruta quente, com assembleias gerais e uma comissão na qual se aboletava a ventania dos meus ímpetos revolucionários. O livrinho de Herberto, dividido em duas partes, “Os Animais Carnívoros” e “A Festa do Crime”, reunia textos de prosa poética, ou melhor, de uma prosa implacável, narrativas visionárias, a roçar a loucura, a nudez.

Na sua cruel exuberância, era um livro vagaroso, a começar pela dedicatória, “a uma devagarosa mulher”. E no poema que então eu preferia, Herberto oferecia esta divagação: Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder – aprendi devagar.

Hoje, as imagens desses dias voltam, quase estrangeiras, esquivas. E, tal como Herberto, aprendi talvez outras coisas. Na versão de Maio de 1981 da sua “Poesia Toda”, Herberto modificou aquele poema que deambulou, vagoroso e nu, pela minha cabeça. Deu-lhe esta versão: “Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, pensar e morrer – aprendi devagar.

Quando se caminha para a morte – devagar, devagar –, ainda alguém quererá ser espião? Foi no quente ano seguinte, no Lobito, era eu recepcionista no hotel de uma ditatorial alemã (estremeço só de a lembrar, aos gritos, no terraço sobre a Restinga), registou-se um cliente, um americano negro. Descobrimos, no quarto dele, nesse tempo de escassa comunicação, um telefone-satélite, gravadores, panóplia tecnológica de abrir a boca de espanto. Terá sido o mais perto que estive de um espião da CIA?

E eis onde queria chegar, às marchas finais da recruta. Caminhámos 30 quilómetros, a G3 e uma mochila eram, então, mais leves do que penas para os meus 20 anos. Montámos acampamento numa colina sobre um rio – o Lépi? – e fazíamos patrulhas. Numa madrugada a abrir-se em manhã, das mais belas da minha vida, ao sairmos do mato para uma clareira de capim alto, um antílope de grande porte, macho, as cruéis hastes a incendiar o começo do dia, olhava-nos. Ali estava, imperial e olímpico, indiferente aos pequeninos cadetes portugueses, ao chocalhar das G3, ao nosso espanto urbano. Era soberbo e soberano. O antílope, herbertiano, respirava devagar. Vi nele uma estátua de ouro e chamas. Uma visão que, como uma vagarosa ondulação, logo desapareceu.

Publicado no Jornal de Negócios

2 thoughts on “O espião de ouro e chamas”

  1. Eh pá, gostava de ver essa edição de bolso do Mircea Eliade, a minha – normalíssima – tem dois volumes nada curtos.
    De resto, lembro com nitidez essa cena do filme “O caçador”. Essa e outras que considero inescapáveis depois de vistas.

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