com um pratinho de tteokbokki lê-se muito melhor

Os meus livros de Abril
Quero a revolução, mas também quero comer tteokbokki

Quantas, quantas revoluções é que já Abril abriu? Festa della liberazione para os italianos desde o fim da II Guerra Mundial, como já fora o mês das Teses de Lenine, em 1917, Abril é o mês que dá nome à revolução sul-coreana de 1960 (a 4.19 혁명), e foi, em 1974, o berço da nossa Revolução dos Cravos. E eu quero, e já vos convido para comerem comigo, um prato de tteokbokki. Adiante.

E aqui estamos, no mais cruel dos meses, como num verso, o primeiro de The Waste Land, lhe chamou o conservadoríssimo T. S. Eliot, aqui estamos com os livros de Abril na mão. O primeiro, da autoria de Zélia Oliveira e de José Matos, explica-se com transparência e ambição no título. Em Rumo à Revolução: Os Meses Finais do Estado Novo, vamos voltar a ver, agora com pormenor, rigor e drama q.b., a demissão de Costa Gomes e Spínola, o livro Portugal e o Futuro, e os quartéis em brando aquecimento com aquele fogo que arde e não se vê. Eis o rumor de fundo que já atroava aos ouvidos de Marcello com dois ll, eis as Caldas que se erguem para logo murchar.

E vejam o mais cruel dos livros, O Príncipe, de Maquiavel. Como não se pode deixar esse implacável e nobilíssimo livro sozinho, juntámos-lhe um dos mais belos ensaios político-filosóficos de Jorge de Sena, Maquiavel de seu nome: dois livros num só, contra todas as formas de tirania, o Sena e Maquiavel que a Guerra e Paz juntou.

De uma tirania que sucumbiu ao peso do sangue, suor e lágrimas dos combatentes da liberdade fala-nos um investigador do Porto, Henrique Varajidás, que escreveu A Vertigem Nazi: Fins e Meios no Regime de Hitler. A excelente capa do Ilídio Vasco faz justiça a uma tese invulgar, que começa nesta pergunta: que relações estabeleceram os nazis com as elites e com as massas alemãs?

E respiro. Respiro eu e respiram as páginas com a leveza de versos que se podem ler à janela ou à beira-mar. De Filipa da Rocha Nunes, um livro de estreia poética, couro fresco, dividido em dez partes que vão de «norte» a «vermelho», passando por «céu» e «terra». De Dinu Flamand, o poeta romeno que António Lobo Antunes tanto ama por tanto o Dinu amar Portugal, publico Cadeira à Janela, que leva na capa uma ilustração de Amadeo, e que tem por subtítulo «Lisboa, Diário da Quarentena». E já a seguir, já a seguir, o pratinho de tteokbokki

Nem Balzac, nem Kafka comeram algum dia tteokbokki. Desculpem a fácil ironia, mas nenhum livro de Kafka é mais divertido, por absurdo e surreal, do que o romance Amérika, e talvez em nenhum livro Balzac se tenha aproximado mais de Portugal do que em Ferragus: Chefe dos Devoradores (a não ser em O Pai Goriot?). Dois clássicos, Kafka na colecção Admirável Mundo do Romance, Balzac nos nossos Clássicos Guerra e Paz. Mais clássico só o tteokbokki na Coreia.

Contemporâneo é o romance de Domingos Lopes, Sequei e Morri Sem Ter Sentido Que Morri. É um torrencial monólogo de uma mulher portuguesa comunista, que se revê sem filtros no Partido. Que vertigem a assalta, ainda bela, atraente, rejeitando o sexo? Quem quer sexo é Min, a protagonista de O Fedorento, romance de Rosemary Tonks, falecida há poucos anos, e que os leitores ingleses redescobriram agora, prestando-lhe o estranho culto que é lê-la muito, lê-la toda.

Para ler devagar e bem estudar é a biografia de João Dotti, gestor na FISIPE e na CUF, obra escrita por Myriam Gaspar, que integra as Histórias de Liderança, uma colecção em parceria com a Fundação Amélia de Mello, com o apoio da Nova School of Business and Economics.

E está já ali o prato de tteokbokki. É só passarmos por um livro incomensurável. Thomas S. Kuhn, o autor do tão belo A Estrutura das Revoluções Científicas, morreu há quase 27 anos. Deixou um livro só agora publicado. Chamaram-lhe The Last Writings, mas eu, que gosto de títulos quilométricos, preferi o título que Kuhn escolhera: A Pluralidade dos Mundos: Para Uma Teoria Evolucionista do Desenvolvimento Científico, um livro de ciência e de filosofia. Lição de Kuhn, que nos convida a aprender a «traduzir»: é muito difícil imaginar a vida mental dos outros e muito fácil perder-se a verdade na passagem de uma mente para a outra. É uma jóia da colecção Os Livros Não se Rendem, parceria da Guerra & Paz com a Fundação Manuel António da Mota e com a Mota Gestão & Participações.

E agora sim, tragam os pauzinhos. Está aqui o prato coreano que vos prometi. Chama-se Quero Morrer, mas Também Quero Comer Tteokbokki. É um romance? É! Não é um romance? Não, não é! Ficção e realidade, este livro tem uma autora, Baek Sehee. Deprimida, insegura, fechada sobre si mesma, a autora quis ir ao psiquiatra. As conversas com o psiquiatra, os apontamentos no seu diário, iluminam este Quero Morrer. Tanto que, num T0, debaixo da manta, tal como a autora, de repente o que queremos é Comer Tteokbokki. Ui, que fome. E que prazer de ler. É Abril, o mais cruel dos meses…

Manuel S. Fonseca, editor

Cheira a Glorioso

A palavra “glorioso” aplicada ao SLB – sim, quando alguém diz “o Glorioso!” – não é qualificativo hiperbólico, mas sim uma forma humilde e escassa de nomear a realidade. Não me espanta que um pai ou uma mãe tenham orgulho de levar ao colo o seu filho ao Estádio da Luz, tal como Maria e José apresentaram Jesus, ainda menino, aos sábios do Templo.

O Glorioso acabara de ganhar, por 5 a 3 ao Real Madrid, a segunda Taça dos Campeões Europeus. Eu vivia em Luanda e soube que o Benfica viria visitar-nos. O meu pai prometeu levar-me ao Estádio dos Coqueiros. O Benfica veio e lá fomos para o peão, então pouco mais do que um aterro. Ia ver o jogo aos ombros do Artur, meu pai, se queria ver alguma coisa, mas a alma benfiquista comoveu-se: os espectadores clamaram – o miúdo tem de ver o jogo com dignidade! –  e, de mão em mão, sentaram-me no alto muro do estádio, com vista ampla para o pelado. A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local.

O meu primeiro Benfica, entrou-me pelos olhos de menino – e nesses olhos ficará para sempre. Ora, poucos anos depois, de novo em Luanda, o Glorioso entrou-me já digo por onde. Eusébio tinha posto a Inglaterra a seus pés, naquele Mundial de que tanto me lembro dos seus golos como dessa lágrima de guerreiro que ele enxugou com a camisola de Portugal, no final do injusto jogo com Inglaterra, o mais injusto dos jogos injustos. Eu vira tudo, em filme, no cinema Império, mas agora ia poder vê-lo, a ele, a Coluna, Torres, José Augusto e Simões, no velho estádio dos Coqueiros.

O mais velho Abílio, meu melhor amigo lá do bairro, tra­ba­lhava na DTA, a com­pa­nhia de avi­a­ção de Angola, a quem cabia dirigir o aeroporto. Spor­tin­guista embora, o meu amigo era de uma gene­ro­si­dade cristã, e disse-me: “Vem comigo e vamos espe­rar os teus joga­do­res à pista.” Fomos.

Saía-se do avião, não havia cá man­gas a não ser as da camisa, e caminhava-se pelo asfalto até à gare, que era mesmo ali a 100 metros. O avião ater­rou, puse­ram a escada e eles des­ce­ram, eram para aí umas 8 da noite, já Luanda tinha jan­tado.

O senhor Otto Gló­ria e o senhor Coluna, o imenso Mário Coluna, vinham à frente. E logo a seguir, o senhor José Augusto, o senhor Simões e o senhor Eusébio. Eram todos senhores, de uma ele­gân­cia irrepreensível. Os joga­do­res, esses joga­do­res do Ben­fica, vestiam-se bem. Fatos ele­gan­tes, gra­va­tas ali­nha­das. Um bálsamo que dava asas à imaginação do olho humano.

E, no entanto, eis o que me deixou siderado: quando a porta do avião se abriu e eles começaram a descer, uma onda de perfume inundou a minha pituitária. O Benfica cheirava bem, aroma divino, e entrava-me pelo nariz.

Otto Gló­ria e Coluna des­ciam das esca­das e com eles avan­çava um fra­grân­cia que refres­cava o capa­cete da húmida noite tro­pi­cal. Eu não sei se era a Eau Sau­vage da Dior ou se era a coló­nia da Avon, perfumes desse tempo. Eu inalei: chei­rava a Benfica. Aqueles jogadores tinham o que, na altura era o melhor que se podia dizer de um homem, tinham cate­go­ria. Encheram de per­fume a noite afri­cana de um miúdo que tinha a mania que era hip­pie e que queria um mundo melhor.  Os meus mitos de saco-cama, sema­nas sem banho e muito cheiro a cavalo sofre­ram, à escada de um avião, o mais vigo­roso des­men­tido. O mundo melhor, o melhor dos mun­dos, podia ser sau­vage, podia ser flo­ral, mas tinha de chei­rar bem. Lição do Glorioso. Lição de classe.

Publicado gloriosamente no Jornal de Negócios

Que lindo está o Sena

Bom dia. Venham.

Não sei se vai ser polémico, não sei se terminaremos todos nos braços uns dos outros, mas sei que a apresentação e debate das NOVAS EDIÇÕES DE JORGE DE SENA vai ter anjos e demónios, revelações miraculosas, duas ou três alusões impuras e um erótico rumor de fundo.
É a grande literatura a encher a sala do Grémio Literário. Às 18:30, 3.ª feira, dia 28 de Março
Venham, se faz favor:
Eugénio Lisboa, Margarida Braga Neves e António Carlos Cortez esperam-vos. Jorge de Sena, também.

ps – e que lindas estão as capas do Sena.

João Bénard, cavalo à solta

Ah, se um dia a brigada juvenil do reumático woke põe os olhinhos naquilo, o João está bem tramado. O João é o João Bénard da Costa e aquilo são os milhares de textos que ele publicou em vida, e que a Cinemateca reuniu. Vão já no volume 5, que me convidaram a apresentar. Reli tudo com devoção canina e logo farejei transgressão, subversão e iconoclastia.

Leiam o Bénard. Está ele a falar de “Lusty Men”, e do protagonista, Robert Mitchum, cavaleiro em rodeos, domador de cavalos, e cito: “Tenho estado a falar de cavalos e cavaleiros. Mas inevitavelmente, a comparação entre cavalos e mulheres surge muitas vezes ao longo da obra e Susan Hayward não é, certamente, a mais fácil das montadas que Mitchum encontrou na vida fora.”

A prosa do João não é domável. Salta, escoiceia, dá pinotes e parte, por vezes, a louça toda. Vejam, houve um dia em que fomos à Embaixada de Itália, recepção em honra de Antonioni, com Manoel de Oliveira a acompanhar.

E já me engano que a história começou antes, quando Antonioni se espantou com uma colecção que Luís de Pina, director da Cinemateca, fazia: coleccionava miniaturas de sanitas e bacios. Também Antonioni gostava de penicos. O João lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.

A visita, porém, era de lotação limitada. Só deu para o João, o Antonioni e a minha mulher entrarem. Ficou o Luís de Pina cá fora, a cigarrear, e eu a fazer-lhe companhia. O pior é que a visita era à porta fechada: mal fecham as portas, o Antonioni, claustrofóbico, por ter vivido meio clandestino num quarto, no final da II Guerra, solta um grito e procura uma saída. Aparece-nos, a mim e ao director Pina, de uma alta janela, logo seguido pela minha mulher. O Luís e eu apanhámo-los pelas pernas e ajudámo-los a descer.

Ora, está o Bénard a contar tudo isto ao Embaixador, com a sua transbordante verve, quando um dos braços dele, ganhando a autonomia de um cavalo do Robert Mitchum, se larga e estilhaça uma cristaleira divina. Ninguém se magoa, toda a gente se ri e foi uma noite de prazer, com Manoel de Oliveira a contar anedotas de alentejanos e Antonioni a contar barzelletti de carabineiros. Tudo coisinhas deliciosas e atrozes que fariam, hoje, desmaiar a brigada woke.

Mas o que interessa é que, no ano seguinte, o Bénard volta ao lugar do crime. E está, agora, a contar à plateia encantada toda a história e como o braço dele deu a volta e espatifou a bela cristaleira. A plateia está delirante e o braço do Bénard também: roda no ar e, com a exacta memória do que tinha feito no ano anterior, catrapum-zás-trás, arrebenta, estoira, estrancilha de novo a bela cristaleira italiana.

Voltou o Bénard à Embaixada de Itália? Voltou, mas dois adidos, o cultural e o comercial, ladearam-no, vigiando rigorosamente a distância dele ao mobiliário, oferecendo o corpo a gestos mais largos e destravados, que a Embaixada de Itália não é propriamente a arena de um rodeo americano.

E ainda me lembro de ter almoçado com o João e a Claudia Cardinale. No fim do almoço, ala para o aeroporto, que a Cardinale estava à justa para o avião. No aeroporto, a Cardinale descobre que perdeu o bilhete. No balcão, o João pede atenção especial à térrea hospedeira e diz-lhe: “É uma VIP. É a Cardinale.” E logo, a prestável e informadíssima menina: “A Cardinale? A do circo?”

Não se riam, a menina tinha razão: ou alguém acha que a Cardinale não era uma fera?!

Publicado no Jornal de Negócios

Zeca, Buñuel e Álvaro Cunhal

O Charme Discreto da Burguesia

Ouçam, para começar, a voz rouca do Manolo Bello, meu amigo galego, mais português do que qualquer português. Eu estou no fim da escala dos amigos dele. Vejam, à cabeça dos seus amigos está o José Afonso, o Zeca, cantor dos “Filhos da Madrugada” e da “Grândola”. O Manolo jura, e é verdade que ele sabe, que a primeira vez que o Zeca cantou em público o “Grândola” foi na Galiza e não em Portugal.

Mas o Zeca também ia ao cinema e, tal como se percebe por alguns versos seus, gostava dos surrealistas. Em Madrid, foi ver um filme do Buñuel, a um cinema com 6 ou 7 salas. Estava com a Zélia, sua mulher, e com o Suso Iglesias, jornalista, galego como o Manolo. Foram ver esse filme vanguardista, repleto de um absurdo que rejeita qualquer linearidade, chamado “O Charme Discreto da Burguesia”. Lembram-se? É a história de seis pessoas da alta burguesia que se reúnem para jantar: e nunca mais jantam, sempre a mudar de sala, e com alguns a sair até pela janela. Também o Zeca teve de sair um minuto, a correr, para ir à casa de banho. Volta e para não incomodar ninguém senta-se no primeiro lugar à mão. Estranha as voltas surrealistas que o filme dá e pensa: “Este Buñuel é arrojado: parece outro filme.” Termina a sessão e procura a Zélia e o Suso. Viste-os? Nem ele! Fica zangadíssimo e vai directo a casa.

Zélia e o amigo estão na sala onde se projecta “O Charme Discreto”. O filme acaba e procuram o Zeca. Até debaixo das cadeiras. Nada. Pensam: “Queres ver que se chateou com o filme e foi para casa?” Procuram um telefone. Ligam. O Zeca atende-os irritado. Já está em casa há vinte minutos: Onde é que se meteram? Foram jantar sem ele?

“Mas o filme só acabou agora”, diz-lhe a Zélia. E é, então, que o Zeca, a Zélia e o Suso descobrem que, a voltar da casa de banho, trocou as salas. Nem sabe qual era o outro meio filme que viu na sala errada. Riem-se tanto como se teria rido o magnífico Buñuel, se tivesse conhecido este episódio. Na sua supina distracção, Zeca fez a maior das homenagens ao cineasta que, no seu último filme, “O Obscuro Objecto do Desejo”, muda a meio a actriz principal sem que a maior parte dos espectadores dê conta disso.

E ainda é o Zeca, mas agora quem conta é outro amigo, o Manuel Cavaco. O Manel foi um dos actores que representou, no Teatro Aberto, um estrondoso êxito, “O Círculo de Giz Caucasiano”, de Brecht. O papel do Manel era de desgaste físico. Suava as estopinhas, lembra-se o Manel, que saía do palco a correr para ser o primeiro a tomar banho. Uma noite, sai do banho e está o Zeca, tímido, lavado em lágrimas, à espera para o louvar e abraçar. E foram, logo ali, dois a chorar. Noutra noite, o Manel, fim da peça, está a vir do banho pós-brechtiano, e vai para o camarim, toalha enrolada à volta do corpo. Avança para ele um homem com um séquito atrás. O Manel reconhece o homem e grita, “Olha o Álvaro Cunhal!” E levanta os braços deixando cair a toalha. Era mesmo o Cunhal. E ali estava, à sua frente, o meu amigo Manel Cavaco, em nu brechtiano, sem artifícios, com toda a oficina à mostra. E aqui, Cunhal e eu estamos de acordo: esta nudez não pode ser castigada.

Publicado no Jornal de Negócios

Todos bem-me-quer, nenhum mal-me-quer

Querer, querer, querer. Hoje trago livros de bem querer a quem muito bem quero.
São os meus dez livros de Março, todos bem-me-quer, nenhum mal-me-quer

Os meus livros de Março
os queridos livros de Jorge de Sena

Eu quis, eu queria, eu quero. Estes são os meus mais queridos livros,  livros de muito e bem querer: os de Jorge de Sena.

Sei, Senhor, que não sou digno, mas sou agora editor de Jorge de Sena: de toda a sua ficção, dos seus ensaios. Antes, rocei-me por umas correspondências, beijei um deus ou diabo prodigioso, umas verrinosas dedicácias, mas agora vou poder publicar tudo, menos a poesia, com as ultrajantes capas novas, que podem ver ali em cima.

Começo com perambulações demoníacas, Andanças do Demónio, ficções de louvor à mais pura imaginação, pégasos que estilhaçam o enfadonho território português. E salto logo para outro diabo, que se desespera invisível sobre outro corpo, no sensual (lúbrico?) O Físico Prodigioso. E a maior surpresa é o terceiro livro, Amor, um ensaio que é publicado pela primeira vez em edição isolada e individual: visita à explosão do amor, do erótico, do obsceno na literatura portuguesa. Livro delicioso, impuro e pecaminoso. Desmintam-me, se puderem. Mas não me desmintam sem o ler.

Há um dos meus livros de Março, um livro que não se rende, que Sena gostaria de ter lido. Falo de A Destruição do Espírito Americano, de Allan Bloom, o livro que pressentiu e adivinhou toda a execrável panóplia de proibições e cancelamentos woke a que hoje assistimos: Bloom canta os grandes livros e os grandes autores com coragem, encanto e exaltação. Publico-o e a Fundação António Manuel da Mota e a Mota Gestão e Participações vão doar um exemplar a cada uma das bibliotecas da rede pública nacional.

Entre os dez livros de Março, tenho um Atlas – a minha colecção está cada vez mais linda – é o Atlas das Fronteiras e bastaria a Ucrânia para se perceber a útil urgência. Vejam também um livro prático, nos Livros CMtv, que se chama Tenho um Animal de Estimação. E Agora? Escreveu-o uma médica veterinária, Sara Calisto, para cuidarmos bem dos nossos cães e gatos, mas também, se formos ousados para os ter, de canários, furões ou répteis.

José Jorge Letria trocou-me as voltas: A Última Valsa de Chopin é uma biografia, mas não posso dizer que seja não-ficção. É uma biografia romanceada, a mão de Letria a fugir para o poético: e não podia ser mais factual e verdadeira!

Fecho com três romances. Remissão, do português Carlos Guedes, é um romance-rio de culpas à procura do perdão, com três mulheres como protagonistas. Kim, de Rudyard Kipling, parece ter só um herói, o espião adolescente que dá título ao livro, mas tem na Índia o verdadeiro herói, tanto que Salman Rushdie bem avisou: «Nenhum outro escritor ocidental compreendeu a Índia como Kipling.» E acabo com Jesus, o herói solitário de Sede, romance pungente, elegante e irónico de Amélie Nothomb. É um Jesus solitário, está na cruz e desabafa. Sacrilégio? Blasfémia? Ao ouvido, Amélie disse-me: «É o romance da minha vida!»

São os meus dez livros, três vêm pintados pela turbulenta liberdade erótica de Jorge de Sena. O bem que eu lhes quero.