Cheira a Glorioso

A palavra “glorioso” aplicada ao SLB – sim, quando alguém diz “o Glorioso!” – não é qualificativo hiperbólico, mas sim uma forma humilde e escassa de nomear a realidade. Não me espanta que um pai ou uma mãe tenham orgulho de levar ao colo o seu filho ao Estádio da Luz, tal como Maria e José apresentaram Jesus, ainda menino, aos sábios do Templo.

O Glorioso acabara de ganhar, por 5 a 3 ao Real Madrid, a segunda Taça dos Campeões Europeus. Eu vivia em Luanda e soube que o Benfica viria visitar-nos. O meu pai prometeu levar-me ao Estádio dos Coqueiros. O Benfica veio e lá fomos para o peão, então pouco mais do que um aterro. Ia ver o jogo aos ombros do Artur, meu pai, se queria ver alguma coisa, mas a alma benfiquista comoveu-se: os espectadores clamaram – o miúdo tem de ver o jogo com dignidade! –  e, de mão em mão, sentaram-me no alto muro do estádio, com vista ampla para o pelado. A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local.

O meu primeiro Benfica, entrou-me pelos olhos de menino – e nesses olhos ficará para sempre. Ora, poucos anos depois, de novo em Luanda, o Glorioso entrou-me já digo por onde. Eusébio tinha posto a Inglaterra a seus pés, naquele Mundial de que tanto me lembro dos seus golos como dessa lágrima de guerreiro que ele enxugou com a camisola de Portugal, no final do injusto jogo com Inglaterra, o mais injusto dos jogos injustos. Eu vira tudo, em filme, no cinema Império, mas agora ia poder vê-lo, a ele, a Coluna, Torres, José Augusto e Simões, no velho estádio dos Coqueiros.

O mais velho Abílio, meu melhor amigo lá do bairro, tra­ba­lhava na DTA, a com­pa­nhia de avi­a­ção de Angola, a quem cabia dirigir o aeroporto. Spor­tin­guista embora, o meu amigo era de uma gene­ro­si­dade cristã, e disse-me: “Vem comigo e vamos espe­rar os teus joga­do­res à pista.” Fomos.

Saía-se do avião, não havia cá man­gas a não ser as da camisa, e caminhava-se pelo asfalto até à gare, que era mesmo ali a 100 metros. O avião ater­rou, puse­ram a escada e eles des­ce­ram, eram para aí umas 8 da noite, já Luanda tinha jan­tado.

O senhor Otto Gló­ria e o senhor Coluna, o imenso Mário Coluna, vinham à frente. E logo a seguir, o senhor José Augusto, o senhor Simões e o senhor Eusébio. Eram todos senhores, de uma ele­gân­cia irrepreensível. Os joga­do­res, esses joga­do­res do Ben­fica, vestiam-se bem. Fatos ele­gan­tes, gra­va­tas ali­nha­das. Um bálsamo que dava asas à imaginação do olho humano.

E, no entanto, eis o que me deixou siderado: quando a porta do avião se abriu e eles começaram a descer, uma onda de perfume inundou a minha pituitária. O Benfica cheirava bem, aroma divino, e entrava-me pelo nariz.

Otto Gló­ria e Coluna des­ciam das esca­das e com eles avan­çava um fra­grân­cia que refres­cava o capa­cete da húmida noite tro­pi­cal. Eu não sei se era a Eau Sau­vage da Dior ou se era a coló­nia da Avon, perfumes desse tempo. Eu inalei: chei­rava a Benfica. Aqueles jogadores tinham o que, na altura era o melhor que se podia dizer de um homem, tinham cate­go­ria. Encheram de per­fume a noite afri­cana de um miúdo que tinha a mania que era hip­pie e que queria um mundo melhor.  Os meus mitos de saco-cama, sema­nas sem banho e muito cheiro a cavalo sofre­ram, à escada de um avião, o mais vigo­roso des­men­tido. O mundo melhor, o melhor dos mun­dos, podia ser sau­vage, podia ser flo­ral, mas tinha de chei­rar bem. Lição do Glorioso. Lição de classe.

Publicado gloriosamente no Jornal de Negócios

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