
Ah, se um dia a brigada juvenil do reumático woke põe os olhinhos naquilo, o João está bem tramado. O João é o João Bénard da Costa e aquilo são os milhares de textos que ele publicou em vida, e que a Cinemateca reuniu. Vão já no volume 5, que me convidaram a apresentar. Reli tudo com devoção canina e logo farejei transgressão, subversão e iconoclastia.
Leiam o Bénard. Está ele a falar de “Lusty Men”, e do protagonista, Robert Mitchum, cavaleiro em rodeos, domador de cavalos, e cito: “Tenho estado a falar de cavalos e cavaleiros. Mas inevitavelmente, a comparação entre cavalos e mulheres surge muitas vezes ao longo da obra e Susan Hayward não é, certamente, a mais fácil das montadas que Mitchum encontrou na vida fora.”
A prosa do João não é domável. Salta, escoiceia, dá pinotes e parte, por vezes, a louça toda. Vejam, houve um dia em que fomos à Embaixada de Itália, recepção em honra de Antonioni, com Manoel de Oliveira a acompanhar.
E já me engano que a história começou antes, quando Antonioni se espantou com uma colecção que Luís de Pina, director da Cinemateca, fazia: coleccionava miniaturas de sanitas e bacios. Também Antonioni gostava de penicos. O João lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.
A visita, porém, era de lotação limitada. Só deu para o João, o Antonioni e a minha mulher entrarem. Ficou o Luís de Pina cá fora, a cigarrear, e eu a fazer-lhe companhia. O pior é que a visita era à porta fechada: mal fecham as portas, o Antonioni, claustrofóbico, por ter vivido meio clandestino num quarto, no final da II Guerra, solta um grito e procura uma saída. Aparece-nos, a mim e ao director Pina, de uma alta janela, logo seguido pela minha mulher. O Luís e eu apanhámo-los pelas pernas e ajudámo-los a descer.
Ora, está o Bénard a contar tudo isto ao Embaixador, com a sua transbordante verve, quando um dos braços dele, ganhando a autonomia de um cavalo do Robert Mitchum, se larga e estilhaça uma cristaleira divina. Ninguém se magoa, toda a gente se ri e foi uma noite de prazer, com Manoel de Oliveira a contar anedotas de alentejanos e Antonioni a contar barzelletti de carabineiros. Tudo coisinhas deliciosas e atrozes que fariam, hoje, desmaiar a brigada woke.
Mas o que interessa é que, no ano seguinte, o Bénard volta ao lugar do crime. E está, agora, a contar à plateia encantada toda a história e como o braço dele deu a volta e espatifou a bela cristaleira. A plateia está delirante e o braço do Bénard também: roda no ar e, com a exacta memória do que tinha feito no ano anterior, catrapum-zás-trás, arrebenta, estoira, estrancilha de novo a bela cristaleira italiana.
Voltou o Bénard à Embaixada de Itália? Voltou, mas dois adidos, o cultural e o comercial, ladearam-no, vigiando rigorosamente a distância dele ao mobiliário, oferecendo o corpo a gestos mais largos e destravados, que a Embaixada de Itália não é propriamente a arena de um rodeo americano.
E ainda me lembro de ter almoçado com o João e a Claudia Cardinale. No fim do almoço, ala para o aeroporto, que a Cardinale estava à justa para o avião. No aeroporto, a Cardinale descobre que perdeu o bilhete. No balcão, o João pede atenção especial à térrea hospedeira e diz-lhe: “É uma VIP. É a Cardinale.” E logo, a prestável e informadíssima menina: “A Cardinale? A do circo?”
Não se riam, a menina tinha razão: ou alguém acha que a Cardinale não era uma fera?!
Publicado no Jornal de Negócios
A fotografia devia ser a do Bénard, o grande Bénard, e não da Cardinale, a linda Cardinale. Vi o Bénard a dois passos de mim num aniversário e não consegui agradecer o que me deu em termos de cinema. Já não vou a tempo… Já a Cardinale, também agradecia muita coisa.
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Guardei a foto do João para o artigo que agora está ali em cima. 🙂
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