Zeca, Buñuel e Álvaro Cunhal

O Charme Discreto da Burguesia

Ouçam, para começar, a voz rouca do Manolo Bello, meu amigo galego, mais português do que qualquer português. Eu estou no fim da escala dos amigos dele. Vejam, à cabeça dos seus amigos está o José Afonso, o Zeca, cantor dos “Filhos da Madrugada” e da “Grândola”. O Manolo jura, e é verdade que ele sabe, que a primeira vez que o Zeca cantou em público o “Grândola” foi na Galiza e não em Portugal.

Mas o Zeca também ia ao cinema e, tal como se percebe por alguns versos seus, gostava dos surrealistas. Em Madrid, foi ver um filme do Buñuel, a um cinema com 6 ou 7 salas. Estava com a Zélia, sua mulher, e com o Suso Iglesias, jornalista, galego como o Manolo. Foram ver esse filme vanguardista, repleto de um absurdo que rejeita qualquer linearidade, chamado “O Charme Discreto da Burguesia”. Lembram-se? É a história de seis pessoas da alta burguesia que se reúnem para jantar: e nunca mais jantam, sempre a mudar de sala, e com alguns a sair até pela janela. Também o Zeca teve de sair um minuto, a correr, para ir à casa de banho. Volta e para não incomodar ninguém senta-se no primeiro lugar à mão. Estranha as voltas surrealistas que o filme dá e pensa: “Este Buñuel é arrojado: parece outro filme.” Termina a sessão e procura a Zélia e o Suso. Viste-os? Nem ele! Fica zangadíssimo e vai directo a casa.

Zélia e o amigo estão na sala onde se projecta “O Charme Discreto”. O filme acaba e procuram o Zeca. Até debaixo das cadeiras. Nada. Pensam: “Queres ver que se chateou com o filme e foi para casa?” Procuram um telefone. Ligam. O Zeca atende-os irritado. Já está em casa há vinte minutos: Onde é que se meteram? Foram jantar sem ele?

“Mas o filme só acabou agora”, diz-lhe a Zélia. E é, então, que o Zeca, a Zélia e o Suso descobrem que, a voltar da casa de banho, trocou as salas. Nem sabe qual era o outro meio filme que viu na sala errada. Riem-se tanto como se teria rido o magnífico Buñuel, se tivesse conhecido este episódio. Na sua supina distracção, Zeca fez a maior das homenagens ao cineasta que, no seu último filme, “O Obscuro Objecto do Desejo”, muda a meio a actriz principal sem que a maior parte dos espectadores dê conta disso.

E ainda é o Zeca, mas agora quem conta é outro amigo, o Manuel Cavaco. O Manel foi um dos actores que representou, no Teatro Aberto, um estrondoso êxito, “O Círculo de Giz Caucasiano”, de Brecht. O papel do Manel era de desgaste físico. Suava as estopinhas, lembra-se o Manel, que saía do palco a correr para ser o primeiro a tomar banho. Uma noite, sai do banho e está o Zeca, tímido, lavado em lágrimas, à espera para o louvar e abraçar. E foram, logo ali, dois a chorar. Noutra noite, o Manel, fim da peça, está a vir do banho pós-brechtiano, e vai para o camarim, toalha enrolada à volta do corpo. Avança para ele um homem com um séquito atrás. O Manel reconhece o homem e grita, “Olha o Álvaro Cunhal!” E levanta os braços deixando cair a toalha. Era mesmo o Cunhal. E ali estava, à sua frente, o meu amigo Manel Cavaco, em nu brechtiano, sem artifícios, com toda a oficina à mostra. E aqui, Cunhal e eu estamos de acordo: esta nudez não pode ser castigada.

Publicado no Jornal de Negócios

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