Por 150 marcos

a abjecção em construção

Duas balas disparadas pelas costas desfizeram-lhe o coração. Chris Gueffroy não será nem o piloto de aviões nem o actor que sonhava ser. Jaz morto e arrefece o menino de 20 anos de sua mãe. À sua frente, indiferente e sólido, o alto muro que separa o Leste e o Ocidente, na Berlim de 5 de Fevereiro de 1989.

Quinze anos antes, num pequeno país exógeno, já a tropeçar da Europa para o Atlântico, libertaram-se de uma prisão, Caxias, os que se bateram contra a longa noite confinada e censurada do salazarismo. O que faz com que muitos desses lutadores desviem o olhar e persistam, ainda hoje, num silêncio embaraçado perante as balas e o coração desfeito de Chris Gueffroy? E sim, confirmo, alvejaram-no pelas costas. Nas mãos, Chris segurava uma escada: quereria, talvez, subir ao céu.

Chris Gueffroy era cidadão não de um país, mas de um oxímoro: a República Democrática Alemã.  Nunca o qualificativo “democrata” foi usado de forma tão fátua como vil, o que Chris aprendeu logo na terna adolescência.

Na escola, em flic-flacs, parafusos ou carpadas, nas argolas ou nas barras assimétricas, Chris encantava. Por ser bom, bonito e menino. Logo, esse Estado Democrático, velando pelo bem dos seus cidadãos-crianças, o escolheu para a carreira militar: seria oficial do Exército Popular.

Vejamos: o corpo de Chris, ágil, flexível, exuberante, trazia dentro uma emoção, porventura um daimon socrático, que lhe dizia para fazer a coisa certa: disse por isso que não, tão pouco o exaltava a catequese comunista. Já antecipamos a cara desapontada, mesmo feia, desse Estado paternal. O que alguns dos presos de Caxias não nos disseram, quando juravam lutar pela liberdade, é que esse Estado, que seria o deles, retaliaria: proibiram o desabusado Chris de entrar na universidade. Mataram-lhe em vida o futuro, o direito ao conhecimento. O avião que Chris queria pilotar nunca levantaria voo.

O adolescente Chris nem temeu nem estremeceu. Foi servir à mesa no restaurante do aeroporto para que o olhar pudesse acariciar a carlinga e as turbinas dos aviões, que lhe apaixonavam corpo e espírito. E fez um amigo, Christian. Discutiam o cerco em que viviam e conversavam sobre Berlim Oeste, oásis que lhes resgatava os dias de cinzento e chumbo.

Mas a vigilante República Democrática Alemã está atenta e já os chama para o serviço militar. Chris e Christian decidem-se: planeiam a fuga, vão saltar o Muro e mergulhar, do outro lado, na liberdade. Corre o rumor, nesse país só feito de rumores e voz do dono, que agora, em 1989, os soldados já não disparam sobre os fugitivos. Veio, de visita ao camarada Honecker, mistura de Salazar vermelho e de chefe da PIDE, o primeiro-ministro sueco. Quem diabo disparará sobre os seus cidadãos, só por saltarem um Muro, durante uma visita tão sensível?

A 5 de Fevereiro, Chris e Christian escondem-se num armazém junto ao muro. Perto da meia-noite, no silêncio e no escuro que ficou depois de passar a patrulha, lançam-se para a primeira barreira. Saltam uma, duas, e correm já para o Muro. Roçaram num alarme: as sirenes tocam, os projectores acendem-se. Não param e as metralhadoras vomitam as balas da República Democrática. Uma fere Christian que fica estendido. Chris corre ainda, escada na mão, tão perto já do sonho. Podiam apanhá-lo à mão, à paulada, mas um soldado visa-o e destrói-lhe o coração. Para ganhar o prémio, 150 marcos, que a República Democrática dá ao soldado que acerte em quem fuja do paraíso. Nove meses depois o Muro caiu: foi Chris, a última vítima, quem o deitou abaixo.

Publicado no Jornal de Negócios

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