
No canto inferior direito desta tela (1565), que é, cópia ou original, de Pieter Bruegel, há umas pernas que se agitam e chapinham no mar verdíssimo, numa agitação tão inócua como anónima. São as alvas pernas de Ícaro. Podiam ser as nossas. Tal como Ícaro, batemos as asas para fugir do labirinto e temos (mal seria, se não tivéssemos) a tentação de voar roçando-nos pelo sol.
Um homem, um herói, vem dos céus aos trambolhões e despenha-se nas águas, ali, junto à costa. Nem essa coisa prodigiosa de voar, nem o heroísmo da fuga, nem o splash do corpo que se despedaça nas águas sobressaltam a rotina do lavrador, a do pescador, a da nau que navega orgulhosa e indiferente.
Em 1938, já Hitler cavalgava uma onda de terror, o poeta inglês W.H. Auden escreveu sobre esse abafado silêncio em que se camuflam os mais terríveis acontecimentos. Abafa-os a minuciosa e árdua teia do nosso dia a dia, o hábito de concentrarmos o olhar no nosso jardim ou pátio, o obstinado rigor de cumprirmos as nossas obrigações. Não há, nesta ignorância do sofrimento alheio, nenhum desprezo. São os vidros duplos da nossa inocência que nos fecham num castelo interior, as high windows de que, noutro poema, nos falou Philip Larkin.
E já falei de mais. Talvez hoje tenha tombado um ou mais Ícaros no adjacente oceano das nossas vidas… Da minha ou da tua. E eu só queria que lessem o poema de Auden enquanto olham para a pintura de Bruegel.
Musee des Beaux Arts
W. H. Auden
Sobre o sofrimento eles nunca se enganaram,
Os velhos Mestres: que bem compreendem
A sua humana posição: como tudo acontece
Enquanto alguém come ou abre uma janela ou caminha apático;
Como, quando os idosos esperam reverentes e apaixonados
Pelo milagre do nascimento, há sempre
Crianças que não se interessam particularmente, patinando
Num lago no limite da floresta;
Eles nunca esquecem
Que mesmo o mais horrível martírio deve seguir o seu curso
De algum modo numa esquina, num lugar inócuo
Onde os cães prosseguem a sua vida de cães e o torturador de cavalos
Coça a sua inocência atrás de uma árvore.
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: todas as coisas viram as costas
Displicentes ao desastre: o homem do arado pode
Ter ouvido o estrépito, o grito desgarrado,
Mas para ele não foi uma queda importante: o sol brilha
Como deve ser nas pernas alvas que se afundam na verde
Água, e o barco sumptuoso e delicado, que deve ter visto
Essa coisa prodigiosa, um rapaz a cair do céu,
Tem um rumo traçado e navega tranquilo.