
Lisboa cheirou bem ao nariz de Filipe II de Espanha. Comparado com o cheiro da Madrid fétida, merdosa até, varrida pelos ventos atlânticos, Lisboa cheirava a rosas nesse dia 25 de Julho de 1581, o dia em que Filipe de Espanha pisou o Terreiro do Paço, pisando, por muito que não quisesse, o povo de Portugal.
Madrid era então a capital de um reino em que o Sol nunca se punha, o reino de Filipe, filho da portuguesa Isabel, filha mais velha do nosso D. Manuel I. Madrid era também um repelente chavascal comparada com Lisboa, o maior porto da Europa, que Miguel Cervantes, autor de “Dom Quixote”, cantou assim: “A cidade é a maior da Europa e a de melhores maneiras; nela se descarregam as riquezas do Oriente e daqui se espalham para todo o universo. A formosura das mulheres espanta e apaixona. A galhardia dos homens pasma, como eles dizem. Esta é, enfim, a terra que aos Céus presta santo e generosíssimo tributo.”
É desta Lisboa que o rei espanhol fica cativo. A recepção fidalga terá ajudado. Aclamado pelas Cortes, em Tomar, é sumptuosa a recepção em Lisboa, que talvez quisesse ser capital do imenso reino que a tinha engolido.
Filipe II de Espanha podia ter feito de Lisboa capital do mundo. A cidade dominava os mares. Nela convergiam Ocidente e Oriente e a embocadura do Tejo parecia querer sugar a África, as Américas, a remota Ásia.
Querendo ser português, Filipe não chegou a ser tão português assim. Em Lisboa, multiculturalista avant la lettre, respeitou tradições: para os cargos sensíveis só nomeou portugueses e Filipe impôs que a língua portuguesa fosse a única dos documentos oficiais – nunca ele teria aprovado o famigerado Acordo Ortográfico. Falava um português aprendido da boca da mãe e de Dona Luísa de Mascarenhas, dama de companhia dela. Em Lisboa, foi tão português quanto pode: vestia-se, comia, fazia os horários dos portugueses, o que significa que terá mesmo sacrificado a sua siesta.
Apesar das insistentes pressões do pai, o sacro imperador Carlos V, Filipe não fez, porém, de Lisboa a capital do imenso Reino, com o que teria consolidado a União Ibérica e, numa lição ao isolacionista Trump, criado a plataforma ideal para o comércio americano que lhe fortalecesse o Império.
Filipe, neto de Manuel e filho de Isabel, não foi português bastante para fazer de Lisboa capital. Agradecemos-lhe: Portugal voltaria, por isso, a ser Portugal e Espanha há-de sempre continuar a sonhar ser a grande Espanha, que deixou de ser.
Filipe deu a Lisboa o Paço da Ribeira, a igreja de São Vicente de Fora e pôs no fim do rio a torre do Bugio. Cuidou dos mortos resgatando até o pálido cadáver de Dom Sebastião, o James Dean português.
Um dia de 1588 juntou na boca do Tejo 130 navios espanhóis e portugueses, a Grande e Felicíssima Armada, que deveria ser invencível, esmagar e pôr de joelhos a inglesa Isabel, filha de Henrique VIII e de Anna Bolena, que ao que parece o amava tão apaixonadamente que por ele suspirou em versos que tais: “Gentil príncipe de Espanha, vem, vem outra vez…”
Deixando-a, a 11 de Fevereiro de 1583, Filipe não fez de Lisboa capital, império de impérios; fez de Lisboa a mortalha donde saíram as velas da morte, as 130 velas que destruídas, incendiadas pelo bárbaro corsário, afundariam os sonhos ibéricos em chorado flamenco e ganido fado. Filipe amava tanto Portugal que ficou com a madeira de uma nau lusa em ruínas, a Cinco Chagas, e dessa madeira fez o seu caixão. Amava Portugal, era é um amor de morte. Que bem o teria filmado Luis Buñuel.
Muito interessante, bom trabalho e obrigado por compartilhar um blog tão bom.
LikeLiked by 1 person
Eu é que agradeço a visita.
LikeLike
se o senhor quisesse ser professor de História e dar assim umas aulas despreconceituosas à velhice portuguesa, garanto que tinha assistência até dizer chega, os alunos eram mais que as mães. Pode crer. Eu cá inscrevia-me e atravessava Tejo e tudo. Não a nado, que em natação sou uma fraqueza.
Dirá, mas então e a malta nova, eu sou eclético (e tal e tal). Bom, mas isso é outra conversa, os novos são mais aula por obrigação, dever e essas coisas todas; o prazer despojado dos deveres, só nos mais velhos. Para os/as de longas e flexíveis pernas podia ser secante.
Fica a proposta.
LikeLike
Mas que sugestão mais gentil. O problema é que eu não sei falar 🙂 . Pior, tenho uma certa tendência para ser sintético e tentar resumir tudo em três minutos. Tinham de ser uma mini-charlas.
Mas se um dia decidir avançar, anuncio a coisa publicamente, aqui.
LikeLike
Força! E deixe-se de desculpas sem pés nem cabeça, já meio mundo o ouviu falar. Já sabe, se um dia chegue a reformar-se, aí está um emprego de tempo que pode beneficiar terceiros. Fica a sugestão.
LikeLike