Foi em 1973, em Lisboa, onde vim estudar Direito, catorze anos depois de ter sido adoptado por uma África que já só existia em Hollywood e nas nossas tontas e amorosas cabeças coloniais.
Na marcelista noite de Lisboa, que já era menos claustrofóbica do que política e choronamente se anda para aí a dizer, éramos dois rapazes e duas raparigas e queríamos ouvir Zeca Afonso. Ele ia cantar no Centro Nacional de Cultura, ao lado do Teatro São Luiz, na afamada Rua António Maria Cardoso, ou seja, nas barbas da PIDE.
A noite e a rua vestiam-se de jeans, muitos cabelos compridos, toda a gente com pernas e olhos cheios de bicho-carpinteiro. Cheirou-me que depressa íamos ter recolher obrigatório, mas estávamos ali de peito cheio e feito.
E chega a notícia: o Zeca não cantaria. Reparem, não é bem a mesma coisa que dar uma veneta a Keith Jarrett e ele sair do palco. Usava-se então a palavra “proibido”, termo que teria caído em desuso, não fosse a salvífica intervenção de algum escol feminista e, agora, do louro Trump. Zeca foi proibido de cantar.
Houve uma convulsão e percebi que a António Maria Cardoso era estreita, uma entrada e uma saída, sem outro recuo estratégico. Digo isto, porque a pequenina multidão se agitou, soltando os bichos-carpinteiros num bruaá que se ouviu no vizinho São Carlos. Façanhuda, mas organizadíssima, a polícia de choque vinha, do São Luiz para o Chiado, num irrepreensível geometrismo, limpando a rua a viseira e cassetete, o que, apesar de serem só nove horas, significava cacetada de meia-noite nas filosóficas cabeças e macios costados que estivessem à mão de semear – e se nós éramos trigo limpo.
Havia, está claro, uma explicação razoável: não só era proibido o Zeca cantar, era também proibido ouvi-lo. Num ápice, eu e o meu amigo entendemos proteger as nossas melómanas e inocentes amigas: ele, ousado, à frente, elas no meio, eu a fechar a coluna: “leave no man behind”, muito menos uma miúda. Fizemos meia-volta para o Chiado: sairíamos por onde tínhamos entrado. E não é que o atrasado mental do capitão que comandava os caceteiros tinha pensado a mesma coisa?! A limpa entrada da António Maria Cardoso era, agora, uma farpadíssima saída. Nós, cândidos filhos da madrugada, tivemos então o pensamento que se tem quando, de tão apertadíssimo, não cabe onde sabem um feijão: “Mas que filhos da puta!”
Portanto, eles malhavam pela frente e por trás. Pequena manada de bisontes mansos, avançámos. No caso do nosso escasso pelotão em fuga, a máquina inimiga portou-se pouco cavalheirescamente. Pelo berro que o meu amigo deu, pela súbita contracção que converteu o meu vigoroso físico numa magra agulha, os choques do Maltês falharam as bastonadas. Passámos ilesos. Mas os brutos, olhar cego ao género, politicamente correctos avant la lettre, não é que acertaram em cheio nos delicados pescoços das nossas amigas? Para nossa viril vergonha, foi sobre o corpinho delas que se abateu a violência da longa noite. Em noites de vampiros, nenhum pescoço se salva.
Cervicais em ai-ai, omoplatas em ui-ui, fomos ao cinema buscar o que a vida nos tirara. À meia-noite, no falecido Apolo 70, desfilavam as silhuetas que Robert Bresson, jansenista francês, arrancou às páginas russas de Dostoievski. A escura noite em que não ouvi o Zeca, foi a branca noite em que vi as “Quatro Noites de um Sonhador”.
Tempos demasiado tristes, Manuel.
O Zeca passava a vida a fugir de viola na mão. E aparecia muitas vezes “de surpresa”, porque se o seu nome aparecesse nos cartazes, já não havia espectáculo, ou havia mais polícia que espectáculo.
E ainda há hoje quem não goste da beleza do mês de Abril…
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De acordo, meu caro Luís, com uma ressalva, havia mais do que uma dúzia de bandeirantes de Abril que, se tivessem algum dia mandado, o Zeca teria, agora por razões contrárias, de se calar outra vez.
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Manuel, mas isso é aquela coisa, que o Jorge Jesus registou, para bom entendedor – e muito bem -, que está no final dos “Lusíadas”. 🙂
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Ninguém representa, melhor do Jesus, o espírito camoniano… 🙂
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