Há cerca de dez anos inventei um alter-ego. Era (ou é?) o meu melhor amigo angolano. Chamei-lhe “o herói”. O herói andava envolvido em negócios de petróleo e viajava por tudo o mundo. De cada cidade por onde passava, cidades onde nunca fui, esse meu “outro eu” escrevia-me uma carta e contava-me episódios delirantes, descrevendo-me com rigor os locais, os ambiente e certos episódios.
Resumindo, estes são textos, em forma de carta, que inventei sobre locais onde nunca fui e situações que nunca vivi. Mas tenho tanta pena, que já não tenho a certeza de não ter, afinal, lá estado e tudo ter vivido. Venham comigo, hoje, à capital da Mongólia.

Que saiba, não há nada parecido em nenhum lugar deste mundo. Mongóis, os três. Sonhadores. Não faço é ideia de como vou explicar a factura que tive de lhes pagar.
O céu é azul e nunca acaba por cima de Ulan-Bator, a capital da Mongólia. Não vim às compras, apesar da camisa Zegna listrada com que saí dos 20 ultra andares de Louis Vuitton, Nokia e Prada da Central Tower. Verdade: nos últimos anos, a cidade sofisticou. Oyou, o meu anfitrião, não se resigna e jura, no conforto dos estofos branquinhos de um Bentley, que há-de fazer um grupo tão grande como o líder Chinggis. Quer vender tudo. Pode produzir tudo.
O que sei é que, por todo o lado, vou rubbing shoulders com russos e chineses, de vez em quando sul-coreanos, um discreto francês. Não andam por cá os meus amigos da Sinopec*, apostados em fazer-nos a cama lá nos trópicos. Não lhes cheira a petróleo. A mim cheira-me. Aqui, tudo o que se vende, vende-se do fundo do poço.
Não é petróleo? Pois não. É carvão e é cobre. Nem me digam que os mongóis são ou foram cavaleiros. Vejo, e vejo que nasceram para ser mineiros. Furam a terra por todo o lado e sonham. Vendem sonhos e têm o melhor cobre do mundo. (Compra acções, muadié!)**
Estou-te a dizer, meu: amanhã, urânio. Vão ficar podres de ricos. Lembras-te das Zundaps*** a zunir na Alberto Correia****? A riqueza destes tipos vai zunir 10, 20 vezes mais. O velho casco da cidade, a pulular de novidades, já ostenta. E tu sabes como o meu lado africano aprecia o luxo, uma certa banga***** que se atreva a ostentar. À volta da Ulan-Bator, que os monges tibetanos inventaram há 300 anos, um cinturão de miséria. 250 mil almas em transumância. Fogem do leste gélido e da estepe madrasta. Amontoam-se nas gher, as tendas de pano que cercam de paliçadas para cortar a inclemência do vento. Olham pobres e perplexos o dourado das luzes e das vitrinas. Vêem sonhos, sonham sonhos.
A mim, venderam-me um. No hotel, duas mulheres e um homem. Sonhadores profissionais. Recebem numa moderada suite. Cada um especializado num género de sonhos. Ele só sonha pesadelos. Uma das mulheres os sonhos de desejo, a outra sonhos de completa quietude. Sonham para outros os sonhos de que os outros precisam. Uma hora, um sonho. Com pesadelos resolvem conflitos. Satisfazem vontades com sonhos de desejo. Com os de quietude oferecem o sublime, nirvana, a quem queira tentar a fuga de puro espírito. O cliente escolhe o género e deita-se ao lado do sonhador. Adormece. A mão do sonhador sobre o braço.
Negociei num inglês rude, de pau. Pedi o sonho de desejo, a pensar: não acredito e se houver sonho vai sair tudo em mongol e retalhos de mau inglês. Dormi. Dormi fundo, meu irmão. Quando acordei, a mongol tinha-me sonhado em português. Sonhou o que pedi. Podia confessar, contar tudo. Não digo. Nunca imaginei viver tão nítido o que não sei se sonhava eu ou, com precisão matemática e música obscura, sonhavam por mim. Depois, sentada, a mulher tinha um ar banal – criada de hotel, dir-se-ia. Dera-me a mais arrepiante aventura da vida. Não sei se sonharam dentro de mim. Não sei se saí de mim para ir sonhar em corpo alheio. Comprei o meu sonho. No bolso, os dedos tocam no papel rugoso da factura. Estremeço.

Glossário:
*Sinopec – companhia petrolífera do Estado chinês. Tem fundadas pretensões tentaculares.
**A conselhos de Herói não se olha o dente
***Zundap – marca de estridentes veículos motorizados de duas rodas a que devo parte apreciável da minha perda auditiva.
****Alberto Correia – rua de bairro de que eu guardo memórias enternecidas. Foi casa dos Negoleiros do Ritmo e deu pelo menos um embaixador ao Vaticano.
*****Banga – estilo, um estilo de que é legítimo ter-se uma certa vaidade. Por exemplo, o Brad Pitt tem banga e não lhe fica nada mal.
Quando li o livro O vendedor de passados achei genial que alguém existisse a vender o passado que se deseja quando a gente não quer o nosso, não o consegue lembrar, quer uma identidade forte e conseguida, etc. E agora o Manuel encontra três pessoas a satisfazer três desejos. Pagando, claro, que tudo, mas mesmo tudo, se paga neste mundo de matéria.
O título do post é extraordinariamente íntimo, digo eu. Ou será só bonito, a mão no ombro a estabelecer o contacto necessário entre o sonhador e o sonho que se transfere.
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Já viu, claro, que é tudo um delírio do Herói, tão mais delirante quanto ele nem sequer existe 🙂 A mão e o ombro, o sonhador e o sonho que é me parece bonito, parece.
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Gosto tanto do seu heróis e gosto de sonhar a Mongólia. Obrigada por partilhar connosco.
(dizem as mulheres das estepes, descendentes das mais bravas sármatas, não te aflijas pelo filho que chora, mas antes pelo que permanece imóvel.)
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Eu também gosto, mas com ligeiros ciúmes, do meu Herói.
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(desculpe, não sei se repeti o meu comentário, se há algum problema com a caixa de comentários. normalmente, os comentários são logo publicados, por isso não sei. se estiver repetido, apague um, por favor 🙂
este também não vale a pena publicar. obrigada.
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Deixe ficar, não se preocupe e aquilo das mulheres das estepes é um belo achado.
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Não é achado, é meu 🙂
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E muito bom 🙂
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