O cavalinho lusitano

Portugal foi à Suécia ganhar por 3-2 apurando-se para o Campeonato do Mundo no Brasil. O que Ronaldo fez nesse jogo deixou a perfeição vermelha de ciúmes. Eu escrevi, logo, o texto que se segue, no velho Escrever é Triste. Garanto-vos, foi o meu texto mais lido de sempre nesse velho blogue. Trago-o para aqui, a pedido, para ficar adormecido na Página Negra. 

cristiano

Foram três movi­men­tos geo­mé­tri­cos, até a bola come­çar a cor­rer à frente dele. De quem? Da seta, do cava­li­nho Ronaldo.

Pri­meiro movimento

A defesa por­tu­guesa recu­pera a bola que vai parar aos pés de Mei­re­les. Junto à linha da grande área, Mei­re­les, três sue­cos a 10 metros, recreia-se um pouco – faz pas­sar a bola do pé esquerdo para a coxa direita, controla-a com um ligeiro toque e fá-la rolar na relva, um quarto sueco a ten­tar cair-lhe em cima vindo do lado esquerdo. Os olhos de Mei­re­les estão no sueco, mas o seu pé direito ignora-o olim­pi­ca­mente e coloca o esfé­rico quase 40 metros à frente, no grande círculo.

Segundo movi­mento

Nani, de cos­tas para o meio-campo adver­sá­rio, ofe­rece o peito a essa bola de Mei­re­les e tabela para Mou­ti­nho. De peito para peito. E eu acho que não, que foi de cora­ção para cora­ção. Repa­rem, Mou­ti­nho é um tipo pequeno, mas faz dessa adver­si­dade uma van­ta­gem, um cen­tro de gra­vi­dade ina­ba­lá­vel. Recebe a bola no peito e deixa-a cair à sua frente. Tenho a cer­teza, jura­ria sobre a Bíblia, sobre a Cons­ti­tui­ção até, que Mou­ti­nho não se mexe, nada em Mou­ti­nho se mexe.

Ter­ceiro movimento

A bola, que veio do peito de Nani, beija o peito de Mou­ti­nho. Desce, aninha-se, com von­tade pró­pria, no pé direito do pequeno médio – a bola ama o pé direito de Mou­ti­nho, afaga-o um segundo e deixa-o, toma a ini­ci­a­tiva de se ir embora (bola empre­en­de­dora), como quem muito cedo, dema­si­ado cedo, se des­pede, e des­liza, num movi­mento elíp­tico de 20 metros, desviando-se ligei­ra­mente para a direita, equi­dis­tante dos dois cen­trais sue­cos, cien­ti­fi­ca­mente colo­ca­dos, mas huma­na­mente per­di­dos. E tal­vez nada venha a acon­te­cer por­que há um outro sueco, o late­ral esquerdo, Ols­son, que vem desembestado.

Clí­max

Ols­son corre como uma velo­ci­dade viking: ele quer e a bola tem de ser dele. Seria, se pela direita, roubando-lhe o inte­rior do rel­vado, não sur­gisse uma seta. A seta, camisa ver­me­lha, sete nas cos­tas, con­quista o espaço, toca a bola com o pé direito, puxando-a para o cen­tro em direc­ção à área, corre com a ale­gria de um gara­nhão a três por jogo, trote pri­meiro, galope depois, um segundo toque na bola ainda com o pé direito, para fechar o que qual­quer pro­fes­sor sabe que é uma dia­go­nal. Olha­mos e parece que a seta, o cava­li­nho, Ronaldo, vai a fugir à baliza. Está entre três sue­cos, três ama­re­las damas de com­pa­nhia, e tem pela frente o temor e o tre­mor de um verde guarda-redes kierk­gar­di­ano. E é quando o rigor de uma recta ali­nha já Ronaldo pelo poste direito da baliza sueca que a parte inte­rior do seu pé esquerdo, mus­cu­lada e ner­vosa pata de cava­li­nho lusi­tano, aplica, como numa mesa de sno­o­ker, uma tacada quase suave que pro­jecta a bola para o canto esquerdo das redes. Um arco suave, de uma infi­nita doçura, tão perto e tão longe dos dedos do Isaks­son, o guar­dião, dedos tão esti­ca­dos e mais angus­ti­a­dos do que o rosto da figura n’ “O Grito” de Munch.

A bola bei­jou as redes, Ronaldo corre para além da linha final com a ele­gân­cia de um mata­dor, olé. E Por­tu­gal inteiro acaba de bei­jar o céu. O pri­meiro beijo. Bas­ta­ria. Mas quem um beijo beija, beija logo mais dois ou três.

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