Comprei este livro em Los Angeles, no meu primeiro L.A. Screenings, em Maio de 1992, ainda a SIC, que era a minha estação de televisão, não tinha começado as emissões. Não foi, até para honrar a bizarria da obra, uma compra de livraria. Comprei-o na loja de uma marca de roupa que era então um modelo de sustentabilidade, a Esprit. E foi mesmo a única coisa que comprei. Senti-me completamente vestido.
Está na prateleira. Na sexta do décimo segundo módulo da estante do escritório. Encostado ao gordíssimo “Dictionnaire des Mythes Litéraires”, o “The Dictionary of Imaginary Places” é um elegante álbum de 21 por 30 cm, da autoria de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Em 454 páginas este Dicionário inventaria lugares imaginários, cidades, reinos, ilhas, continentes com que os escritores povoaram a literatura mundial.
Todos? Quase.
Face à vastidão da escolha, Mangel e Guadalupi decidiram eliminar aqueles lugares que a exaltada inspiração dos ficcionistas situou em inefáveis espaços celestiais ou nos mais nefandos e enxofrados infernos. Sem céu, sem inferno, de Hermafrodita a Laputa, a ilha voadora, o Dicionário faz apenas o elenco dos lugares imaginários que se situam algures no planeta Terra, onde julgamos ilusoriamente habitar. Nem por isso o acesso é evidente: mesmo para o mais impenitente e diligente viajante, fica já o aviso de que não é com o primeiro low-cost que lá vai chegar.
Por honra da firma, acrescento que foram igualmente excluídos lugares como o Yoknapatawpha de Faulkner ou a Balbec de Proust. São, segundo Manguel e Guadalupi, lugares reais camuflados.
O que podemos então encontrar neste guia? Palavras, mapas e desenhos que mostram castelos, campos e montanhas, habitados pelos cavaleiros do Rei Artur, as terras e lugares onde Gulliver foi minúsculo ou gigante, que nos revelam Atlantis ou Shangri-la, descrevendo-lhes a geografia, a história, os insólitos habitantes. Dois anos de trabalho, milhares de lugares visitados de que sobraram, na versão final expandida que guardo religiosamente, mais de mil e duzentas entradas apresentadas com rigor e graça, com austero enciclopedismo ou com apelo quase sensual. Basta lembrar a descrição de Frivola, ilha do Pacífico governada por “Sua Alteza Toda a Elegância”, onde os frutos se desfazem na boca como espuma, as árvores se dobram graciosas ao mais ligeiro sopro e o suave assobio das mulheres faz nascer o centeio nos prados.
Ou recordar Capillaria, país submarino situado no oceano que separa a Noruega dos Estados Unidos, de gigantescas mulheres louras, caras angélicas, corpos de seda, pele alabastrina. Capillaria é uma terra sem homens, mas inundada de “bullpops”, criaturinhas na forma de órgãos sexuais masculinos que as pulposas habitantes devoram com particular apetite, não só por os acharem uma delicacy, mas também por acreditarem piamente que o seu consumo é inquestionável ajuda à capacidade de reprodução da loira e feminina raça. (Tentado embora, temo ainda não ser este o bom momento para, bullpop, me oferecer às presumíveis, porventura irreversíveis, delícias de Capillaria).
Para que tenham uma ideia mais precisa do livro, deixem-me dizer onde começa e acaba a peregrinação dos autores que, espero, vos inspire agora périplos inconfessáveis. O “Dicionário dos Lugares Imaginários” começa em Abaton (do grego a, não; baino, eu vou), uma cidade cuja localização é permanentemente móvel, o que a torna quase inacessível (garanto que não há mesmo GPS que vos valha). Alguns viajantes, diga-se, já a viram surgir, delicada e efémera, na linha do horizonte. Os testemunhos dão conta de altíssimos muros e poderosas torres de luz azul ou branca, embora no único vislumbre que dela tive (é verdade), me tenha surgido intensa e deliciosamente vermelha. Essa fulgurante e brevíssima visão causa a alguns viajantes arrebatado êxtase, a outros funda e inultrapassável tristeza. Tão incurável uma como outra, diga-se.
Termina, o adorável dicionário, em Where-Nobody-Talks (Où-On-Ne-Parle-Pas), o país que Jean Marie Gustave Le Clézio localizou no interior da nossa própria voz. Os habitantes são mudos, mas dizem maravilhosas coisas uns aos outros por palavras inaudíveis. O país, as estradas, os telhados, os automóveis estão cobertos por uma espessa e invisível neve que tudo abafa.
Silenciosa embora, esta pequena quinta que é a minha Página Negra não consta das entradas. Apavora-me a ideia de que não se trate, afinal, de um lugar imaginário. Resta-nos fugir daqui a sete pés. De viagem, obviamente. Vamos, por exemplo, a Figlefia, terra de exilados sensualistas de Limanora que se converteram numa raça promíscua e debochada. Raptam e escravizam mulheres das outras ilhas do arquipélago Riallaro. Quem sou eu para os censurar.
Um livro que lhe fica bem, sim senhor. Mas, como todos os livros de lugares, uns são melhores que outros. A mim agrada-me lugar onde o trigo cresça ao meu assobio ligeiro. Ao menos há sempre pão para a boca. Havendo outra vida, mesmo sem livro, acho que consigo chegar lá.
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Bea, cada um de nós tem de fugir para o seu esconderijo. Como na infância. 🙂
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