Por favor, deixem-me contar-vos como é que conheci, nunca o conhecendo, Jonathan Demme. Coisas do século passado, já tinha escrito sobre ele para o “Expresso”, a propósito de um filme estimável, “Melvin e Howard”, pequena delícia monocasta, todo feitinho em cima de um único e improvável fait-divers: quem o viu sabe que é o filme de um tipo que, na highway 95, pára para dar uma aflita mijinha e encontra estatelado numa valeta, se assim se pode dizer, o ultramilionário e incógnito Howard Hughes, que espatifou a moto em que vinha a zunir. Para começo de conversa é mais do que bem caçado. Jonathan Demme caçava e bem.
Poucos depois, e não foi para dar uma aflita mijinha, vou a Los Angeles. Aboletei-me, nesses anos 80 do século XX, em Westwood, bairro selecto e universitário, todo encavalitado na UCLA. E mergulhei nas salas de cinema.
Os cinemas de que eu mais gostava ficavam ao lado de uma gelataria drive-in. Lembro-me: de carro em carro, as saudáveis pernas das mocinhas giravam, ágeis e velozes, em cima de patins. Transfigurados anos 80, na irreal Los Angeles.
Naquele tempo, via os genéricos dos filmes até ao fim. Nesse cinema de Westwood, ecrã cheio de nomes, últimos acordes da banda sonora, de repente leio em militantíssimo português, “A Luta Continua”. Por cima, a figura de um velho guerrilheiro ou, quem sabe, um jamaicano cerzido a reggae.
Sempre desconfiei que o passado se dana por nos pregar partidas, mas nunca o imaginei a atropelar-me, em L.A., no “Something Wild”, de Jonathan Demme. O filme começa com Charlie (Jeff Daniels), executivo certinho que esconde um grão de rebeldia no mais acrisolado dos seus ventrículos. Almoçou rapidinho e, revolta de menino, sai rapidinho sem pagar a conta. Lulu (Melanie Griffith) viu e gostou. Moreníssima, franja negra a reiterar o nome, boca de frutos vermelhos, Lulu vai dar guita à rebeldia de Charlie. Mal dá conta e Charlie está como Deus o mandou ao mundo, em sítio onde Deus não costuma estar e se dispensa que esteja. Charlie já tem um par de algemas a prender-lhe as mãos à cabeceira da cama, Lulu está de lábios e mãos livres, o indesculpável pecado das pernas, a dar-nos vontade de estar onde está, não sei se humilde ou humilhado, o rebelde Charlie. Chega de humildade e pequemos: com a guita com que estão, Charlie e Lulu voam tão alto como os papagaios da minha infância. Coisas destas sabem bem e, depois de a língua as tocar, quem é que quer saber de empregos e família. Charlie já não quer e é nisto que o cinema dá vinte a zero à vida.
“Something Wild” começa assim, americano, mas a grande surpresa vem no fim. A música do genérico amarra-nos o rabo à cadeira, e deixamo-nos ficar a ver os mil nomes dos técnicos até que, num português que nenhum americano na sala beijou, inalou ou fumou, surgiu um gigantesco “A Luta Continua”. Onde, Demme, é que foste buscar isto, este “A Luta Continua”, que me fez cheirar África e, de África, a moreníssima Angola, Lulu dos meus 20 anos? Nem emprego, nem família, lembrei-me da noite da independência de Angola, 11 de Novembro de 1975, em Novo Redondo, a bater estrada, como Howard Hughes (querias, não querias?) a caminho de Luanda. Noite dormida em cama de estrelas, céu e mar, os miúdos das Fapla a fazerem das Kalaches o festivo fogo-de-artifício. A luta continua e, olha Charlie, se aos 20 anos não fores anarquista, aos 40 nem chefe de bombeiros hás-de ser.
Enganei-me no sabor a África de “Something Wild”? Li, e acho que ainda anda pela Wikipédia, que a frase, repetida por Demme em “Married to the Mob”, “Silence of the Lambs” e “Philadelphia”, seria tributo ao 25 de Abril. Estranhei: não parece, não é, a língua dele.
Vai daí, um dia apanho o Demme e o Neil Young a trocarem prazeres perversos e culpados. O Neil Young dizia os filmes favoritos dele, o Demme respondia-lhe com a sua lista de canções preferidas. E eis que o Demme escolhe o jamaicano Big Youth e dele um álbum com título em português: “A Luta Continua”. Big Youth e Demme falam o mesmo idioma, falam reggae. Ao reggae, a Luta Continua chegou de Angola e Moçambique, via Miriam Makeba. Sem África, Demme nunca teria assinado em português, mas com cantado sotaque jamaicano, o final dos seus filmes.
Não me enganei quando, num cinema de L.A., a boca me soube a África. No fim do filme, já mudados, Charlie e Lulu reencontram-se. Queixa-se ele de que ela não lhe chegara a dizer adeus. Ela jura: “Claro, eu nunca te quis dizer adeus”. Nem eu à terra morena da luta continua, nem a ti Jonathan Demme, que nos morreu no dia 26 de Abril de 2017.
E a luta, meu kamba? Há dois anos que nos deixaste para aqui com o “Silêncio dos Inocentes”, o “Married to the Mob”, o “Philadelphia”, deixaste-nos para aqui com o intenso, leve e adorável canibalismo familiar de “Rachel Getting Married”, mas e a luta, a luta não continua?
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