Podia ser o Tejo, se Dostoievski conhecesse o Tejo, ou quatro noites a espalhar-se sobre o Sena, como o cineasta Robert Bresson as filmou. Mas os soluços vêm do meio da noite branca que o Neva atravessa.
São de uma estranha crueldade os homens russos; sonhadores os de São Petersburgo, sobretudo quando aos vinte e seis anos já, russa e fatalmente, falharam a vida. A este, pobre funcionário público, devastam-lhe sentimentalmente os ouvidos, os soluços de uma amorosa jovem orfã que vive com a avó cega. Da orfandade e cegueira fez Chaplin o lirismo cómico de “City Lights”. Também aqui, logo na primeira linha de Dostoievski, a noite de São Petersburgo é de luzes, maravilhosa – “uma daquelas noites como só a nossa juventude conheceu, caro leitor. O firmamento estava tão cheio de estrelas e tão calmo, que, ao olhá-lo, os homens faziam involuntariamente a si mesmos esta pergunta: — Podem existir maus sob um céu tão belo?”
Há uma mulher que chora sobre um rio e um homem que, por vê-la, se comove e inquieta. Segue-a. Mais dez páginas e já ele se arrancou da sua timidez e lhe fala. Ela entregou-lhe o braço, um aperto terno da mão e a promessa de um segredo para a noite seguinte. Uma condição: não se apaixone por mim.
Não me aperte tanto as mãos, dir-lhe-á ela, na segunda noite, e conta-lhe o segredo. Ama outro homem. E o homem que ela ama, ama-a também. Partiu para Moscovo. Procura os meios que o tornem digno desse amor. Voltará um dia. Por ela. Um ano e nem uma carta. Mas voltou agora, sabe ela. Voltou há três dias, três dias em que não a procurou. Três dias que são a causa dos abafados soluços da primeira noite. E chora de novo, como se tivesse perdido a esperança de toda a felicidade. O sonhador, cheio de vontade que fosse para ele a doçura de tantas lágrimas, diz-lhe “não chore, escreva-lhe” e já imagina, para o outro, a carta que quereria que ela lhe escrevesse.
Ela virá na terceira noite. Contente com a amizade dele. Feliz, a fingir que ele não se apaixonou por ela. Esperam, às onze, que o amado apareça respondendo ao apelo da carta. Mas não vem e ela consola-se com “Amo-o a si por não se ter apaixonado por mim”. E num incontrolado excesso platónico: “ Porque não é ele você? Preferia. Mas é a ele que amo.”
E voltam a quarta noite, na página 66 desta novela que a Editorial Inquérito, há décadas, vendia a 3 escudos, com tradução de José Marinho. Talvez o amado não tenha recebido a carta. Toda a ausência é uma humilhação. Nastenka soluça. Quatro noites de soluços. E o sonhador não aguenta: as lágrimas dela excitam-lhe o coração, tumultuam-lhe a alma. Ama-a e diz-lhe que a ama.
Se na primeira noite os soluços dela o comoveram, agora a paixão dele comove-a a ela. Diz-lhe que o outro não a merece e, embora ainda o ame, já é a este sonhador de quatro noites que quer dar a mão. Prometem-se, vão entregar-se e, de repente, a mão dela estremece na dele.
– Nastenka! – disse uma voz por detrás de nós. – Nastenka!
Meu Deus! Que grito! Como ela se separou de mim…
Pronto, agora fiquei a saber a história toda. E eu que ainda nem cheguei à página 66. Mas estou quase lá, mesmo mesmo a pisar-lhe os calos, parei na 64/65. Hei-de ler, Dostoievski merece. Escreve bem e isso.
Que enredo, parece quase camiliano.
LikeLike
sorry pelo spoiler! 🙂
LikeLike
Já li há muitos anos. Há um filme belíssimo do Visconti com a Maria Shell e o Mastroiani.
LikeLike
Tenho de rever esse Visconti um dia destes. Bem lembrado
LikeLike